Mais um conto de Luís Pimentel

 

A diligência

Luís Pimentel

Era eu mais o cabo Chico, na empreitada. O cabo era responsável pela diligência, por conta da patente, só mesmo pela patente. Apesar de soldado raso, sempre fui mais destemido do que ele, é bom que se diga.

Não que Chico fosse frouxo, não era bem assim. E não digo isto pelo fato de ele ser meu superior, pois não sou de me curvar a formalidades nem me presto ao ofício de puxa-saco. Mas a verdade é que se tratava de homem de costumes muito jeitosos e delicadeza de alma inaceitáveis para quem tinha que lidar com indivíduos de má índole, salafrários, gatunos e até assassinos.

Muitas vezes, na sala de interrogatório – melhor lugar para se destrinchar uma questão e se ler a natureza de um sujeito bom ou mau –, vi o cabo Chico demonstrar moleza incompatível com a farda, dispensar a verdadeiros facínoras tratamento que deve ser dispensado só a homens de bem. Coração mole. Maior tolice que um homem pode fazer é dar ouvidos e coração a quem não deve.

Eu dizendo gente ruim é gente ruim, cabo, não perca seu tempo, meu amigo. Ele respondendo soldado, deixe disso, soldado, não julgue um filho de Deus pela aparência nem acuse ninguém de ter feito um malfeito só porque disseram que o malfeito foi feito. O infeliz se aproveitando dos bons sentimentos do coitado e repetindo é isso, cabo, pois é isso, meu cabo, é o que tenho dito aqui desde o dia em que cheguei. Mas esse soldadinho aí não me escuta e só quer saber de bater e bater, como se estivesse lidando com um jegue empacado.

E o inocente do Chico me condenando, não quero saber de valentia aqui dentro, rapaz, interrogue sem apelar para a maldade, não faça isto, pois não aceito violência aqui, soldado, como se eu fosse o meliante e o outro o bonzinho. Já se viu?

Não que às vezes o sangue não ferva, a mão não fique pesada e eu não perca a cabeça. Acontece. Mas não tinha acontecido ainda com aquele peste sem vergonha, e isto foi o que mais me doeu.  Eu dizendo não encostei a mão nesse traste, cabo, e o cabo gritando não minta, não minta, soldado, que o homem está com o olho roxo, a testa aberta, o beiço inchado. Tão desgraçado o desgraçado, que até se feriu no prego da porta para dizer que fui eu quem o machucou, e depois sair da Delegacia rindo e debochando da autoridade.

Mas a justiça não falha e o miserável apareceu morto em um buraco escuro, dias depois de sumir da minha frente. O cabo Chico pensa que fui eu o providenciador do desaparecimento e fez de tudo para me enquadrar numa penca de processos, até administrativos, para que eu perdesse o ganha-pão e ainda fosse preso. Só não conseguiu por falta de provas. Pois provas não são encontradas em qualquer esquina.

     No dia da diligência, marcada com quase uma semana  de antecedência, nós deixamos a Delegacia em Riachão bem cedo, seguindo o rastro de um sujeito com cara de perigoso, que estava escondido e acoitado lá para os lados do Moquém, em uma tocaia que já durava bom tempo, à espera de algum inocente para roubar ou matar. Ou roubar e matar, que gente ruim não economiza na hora do mau serviço.

Não tínhamos sequer um retrato do malfeitor para nos orientar nas buscas, para mostrar a um passante e perguntar se viu um cabra assim e assado que nem esse, mas fomos em frente, tendo como base o retrato falado que era só falado mesmo, pois nem eu nem o cabo sabia desenhar para transformar o retrato falado em desenhado.

Acabou se tornando um retrato gravado na mente, tanto que os autores da queixa descreveram o homem, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito. Também sabíamos que o mal encarado tinha umas costeletas fora de moda que desciam do cabelo pela curva da barba, até o meio da cara. Quer dizer, devia ser feio como o diabo.

Enchemos os alforjes de carne seca, preá e frango assados, rapadura e farinha. Enganchamos no lombo do burro também, preso na cela, um vasilhame grande cheio de água fresca. Prontos para a guerra, para a guerra partimos.

A pesquisa junto aos moradores do vilarejo começou na manhã do dia seguinte. A gente ia perguntando se viu passar hoje, ontem ou qualquer dia um sujeito assim, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito e amplas costeletas. Eu perguntava, oferecia a descrição, o povo ia dizendo não e não, não vi, nunca vi, e o cabo Chico só agradecendo, obrigado, muito obrigado, gentil que só uma freira, sequer se dando conta de que aqueles nãos todos não passavam de desfaçatez, os matutos estavam era protegendo o endiabrado.

A minha preocupação era só encontrar o rastro do sujeito, para levá-lo são e salvo às barras do Tribunal e fazê-lo pagar pelo crime cometido. O delegado me amofinando, estamos perto do homem, soldado, vamos pegá-lo, você terá que se comportar como autoridade policial e não como torturador. O senhor não vai me triscar um dedo no preso, soldado, é uma ordem, não é um pedido. Parecia que falava de um santo e não de um monstro, agora vejam.

Era ele, só podia ser aquele, não tinha como ser outro o indivíduo que encontramos na terceira ou quarta manhã de buscas, deitado em uma esteira, à sombra do umbuzeiro florido e forrado de umbus, uns verdes e outros amarelos. O cabo fez o gesto com a mão para que eu me contivesse e passou à minha frente, como a mostrar quem carregava a maior patente e era o responsável pela  missão, grande bosta.

Perguntou se podia fazer umas perguntas e o suspeito respondeu que sim, sem demonstrar qualquer susto ou apreensão. Nem um pouco preocupado com a presença da lei, cínico que só ele. Olhei bem nos olhos do sonso e fui dizendo muito bonita essa sua costeleta, seu fulano, há quanto tempo o senhor a usa? O cabo me mandou calar a boca, calar a boca, e se dirigiu ao queixo fino como se estivesse se dirigindo a um príncipe: já andou por tal lugar assim, assim? Conheceu fulano de tal? Envolveu-se em briga não sei quando, que resultou em morte? É fugitivo? Porta arma de fogo ou faca, punhal, peixeira?

E o descarado não, não, não, não, não senhor, não fiz, não andei, não briguei, não uso arma, não sou eu, não, não, não, meu sangue subindo pelas veias do pescoço, pois via a mentira nos olhos do cabra ruim, e o cabo nada de agir.

Até que eu disse cabo, preste atenção, cabo, ora, ora, cabo, ao menos reviste o homem, não adianta perguntas e só perguntas porque esse demônio vai negar e mentir até não agüentar mais. O cabo disse se acalme, não me acalmei. Agarrei o costeleta pelos colarinhos, sacudi para um lado e para o outro, para cima e para baixo, porque se tivesse qualquer arma de fogo ou de lâmina escondida no corpo ia cair. E caiu.

Caiu o canivete que o suspeito carregava no bolso da bunda, enquanto eu gritava está aí a prova, a prova aí está, a arma com a qual o bigode grosso perpetrou o crime. Foi então que o cabo me empurrou para trás, tomou o homem de minhas mãos e o levou para detrás de uma cerca que passava rente ao umbuzeiro. Dando ordens para que eu me acalmasse, ficasse onde estava, não desse um passo à frente, pois ia interrogar o suspeito a sós, imaginem.

Eu fiquei para morrer, com vontade de enforcar o cabrão e também o cabo conivente, e logo, logo o bestalhão saiu de trás da cerca, ordenando vamos embora, soldado, vamos embora que o homem é inocente.

Eu disse cabo, pelo amor de Deus, cabo, ponha a mão na consciência, eu não acredito que o senhor acredite na inocência desse meliante. O homem é inocente, ele repetia, inocente, esse aí nunca matou nem uma mosca. Eu já estava com os nervos querendo sair todos pela boca quando perguntei e o canivete, cabo, o senhor não viu o canivete? Ele respondeu com a serenidade de um anjo e não com a firmeza de um policial:

– O canivete ele usa para descascar laranja.

E ainda repetiu, nas minhas barbas, diante dos meus olhos arregalados, dos olhos arregalados do burro de carga que nos esperava para fazer o caminho de volta:

– Para descascar laranja.

Poemas de Raymundo Luiz

 

 

 

POÇO

Perder-se.

Ai, perder-se – sim

no próprio mistério do trajeto

das sacudidelas

agônicas

 

SEGREDOS

Tudo guardado

no cofre das reminiscências:

oblíquas pontes

flores no cio

latitudes calosas.

 

Tudo o que já não é o mesmo

e visto pela fresta

da noturna alma 

 

POEMETOS

 

                VI

            P/ Elieser César

Em cada alma

desliza

Indomável barco.

A corda

não amarra

o sussurro das âncoras

 

 

                VIII

Os panos das velas

(anônimos veleiros)

seguem no regaço

das cantigas dos ventos.

 

HAICAIS

 

              9

Oiro partido.

Dez mil nuvens de viés.

Sol no poente.

 

           12

Lagarta na folha

Colorida transmutação

efêmeras asas

 

           13

Na noite espessa
vagalumes encandeiam
as veias das florestas.

 

Raymundo Luiz Lopes – Natural de Salvador. Professor da UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana – e um dos seus fundadores. Editor da Revista Sitientibus/UEFS. Coordenador do Programa Interuniversitário para Distribuição do Livro. Membro da Academia Feirense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana. Vice-Presidente da Fundação Carlo Barbosa. Tem vários trabalhos literários publicados em revistas, jornais e via internet. Lançou ‘Gambiarras para o Natal’/conto e ‘ Velas de Arribação’ /poesia. Professor de Tai Chi Chuan. Participa de movimentos culturais e literários.

 

Dia Internacional da Mulher

 

  

Sempre que falo ou escrevo sobre o “dia internacional da mulher”, fico um pouco constrangida; primeiro porque sou contra dias especiais, pois essas datas sempre terminam deturpadas pelo apetite comercial. Segundo, porque as homenagens sempre transfiguram  a imagem da mulher.

 Acredito que os festejos  e homenagens são importantes, sobretudo para que se possa entender o que e o porquê de comemorar a data. Mulheres são seres humanos, pessoas capazes e versáteis. Às vezes são frágeis e medrosas; às vezes se auto-censuram; outras vezes são destemidas e corajosas.

 

Penso nisso porque fico indignada com a discriminação, até mesmo quando exaltam uma mulher que assume um posto importante, como se ela estivesse realizando uma façanha, como se não fosse capaz de chegar até ali, como se fosse um privilégio, um golpe de sorte e não um direito, uma conquista. Existem mulheres que sabem cozinhar; outras que detestam cozinha. Algumas que adoram decorar a casa, outras que não têm o menor jeito. Há mulheres motoristas de caminhão, pilotos de avião, taxistas, garis, pescadoras, faxineiras, professoras, cantoras, atrizes e políticas, no Brasil e em outros países do mundo. Mas também há mulheres que apanham de homens, que são discriminadas no trabalho; mulheres que vivem na rua, mulheres mal-remuneradas, mulheres exploradas, enfim, mulheres maltratadas.

Falam das conquistas de igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas isso também pode ser perigoso porque é uma forma de preconceito. O mundo evoluiu. A mulher conquistou seu espaço, apesar da maternidade e das tarefas domésticas  que executa no seu cotidiano; mas ela aprendeu a batalhar, a buscar o que lhe interessa. Essa “igualdade” tão comentada e tida como reconhecida, muitas vezes é discutida e tripudiada, porque na prática as discriminações persistem e são gritantes.

Acredito que esse dia internacional da mulher não deva ser somente um dia de celebração, um dia de festa, mas sobretudo, um dia de reflexão sobre o  papel da mulher  na sociedade atual. Que a comemoração não se restrinja ao almoço ou jantar no restaurante, ao frasco de perfume importado, ao buquê de flores (bem-vindos hoje e em qualquer dia do ano), ao cartão de felicitações ou àquelas exaltações caricaturais tão bem utilizadas pela mídia.

Seria melhor que nos vissem simplesmente Mulheres, assim mesmo, com letra maiúscula. Mulheres conscientes e que se orgulham da sua condição, em casa, no trabalho, na rua, na escola, em todo lugar; mães, filhas, esposas, noivas, mulheres trabalhadoras urbanas ou rurais; motoristas, médicas, cabeleireiras, advogadas, maquinistas, esteticistas, cozinheiras, jornalistas, bancárias, domésticas, donas de casa, floristas, dentistas, manicures, comerciárias, artesãs, enfermeiras, costureiras, empresárias, manequins, mães de santo, baianas do acarajé, bailarinas, faxineiras, santas, loucas, enfim, MULHERES!

 

E nunca é demais lembrar Adélia Prado, uma poeta que admiro – e que não precisa ser chamada de poetisa para que acreditem nisso – porque ela soube resumir em poucas palavras o que a maioria das mulheres sente e pensa. Em seu poema, Com licença poética, ela contesta Drummond replicando o “anjo torto” dos versos do Poema de sete faces, que decretou: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

O anjo de Adélia é esbelto, toca trombeta e anuncia: “Vai carregar bandeira”. Mas a poeta sentencia: “Cargo muito pesado pra mulher”. Com jeito suave, mas corajoso, os versos de Adélia revelam, além da fragilidade da alma feminina, a força e a determinação da mulher que sabe o que quer:

 “Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou. »

                              (Adélia Prado)

 Observação: As flores são para todas aquelas que pensam mais ou menos assim.