Um poema de Paulo Leminski

 

Atraso Pontual

Ontens e hojes, amores e ódio,

 adianta consultar o relógio?

 Nada poderia ter sido feito,

 a não ser o tempo em que foi lógico.

 Ninguém nunca chegou atrasado.

 Bençãos e desgraças

 vem sempre no horário.

 Tudo o mais é plágio.

 Acaso é este encontro

 entre tempo e espaço

 mais do que um sonho que eu conto

 ou mais um poema que faço?

.Paulo Leminski

Domingo triste

 

Hoje pela manhã ao abrir a internet leio, incrédula, a notícia da tragédia em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Centenas de jovens perderam a vida quando buscavam distração. Imagino a dor e o sofrimento das famílias e amigos destes jovens e me solidarizo com eles. Quando leio numa manchete que “Celulares de vítimas do incêndio tocavam durante retirada de corpos”, sinto o coração apertar e prefiro silenciar.

Leio o texto do cronista Fabrício Carpinejar, Morri em Santa Maria  publicado em seu perfil no Facebook, sobre a tragédia em Santa Maria e penso: o Brasil ficou órfão de centenas de filhos; neste triste domingo os irmãos brasileiro(a)s sofrem a dor da perda. Cada um de nós morreu um pouco.

O dia em que nevou em Paris

Ana Carolina Peliz

Eu já estava atrasada para um jantar na casa de uma amiga e ainda tinha que comprar um presente. Tinha decidido que aproveitaria a ocasião para comemorar seu aniversário que tinha sido há algumas semanas.

Decisão que acabou complicando bastante minha vida. Na saída da biblioteca, as pessoas se amontoavam nas portas enquanto olhavam para o céu e conversavam entusiasmadamente pelos telefones.

Sem ter muito tempo para satisfazer minha curiosidade, me lancei na noite fria e escura. Um pequeno floco branco pousou delicadamente sobre meu nariz. Imediatamente uma mistura de apreensão e euforia tomou conta de mim. Estava nevando.

De repente todo o ruído do mundo parou para deixar o manto branco se estender na noite parisiense. Os passos se fizeram mais lentos ao mesmo tempo que os sorrisos, contornados de lábios arroxeados, se iluminaram um a um.

A neve em Paris é como o primeiro raio de sol da primavera, tem o poder de deixar tudo mais leve e opera uma transformação na alma do parisiense, maltratada pelo inverno. Um instante mágico e fugaz. A contemplação se faz obrigatória.

Todos achávamos que quando acordássemos no dia seguinte ela já teria nos abandonado como costuma fazer. Mas quando acordamos, qual não foi nossa surpresa, ela tinha decidido passar o fim de semana em Paris.

 “A última vez que vi algo assim foi em 1992”, dizia uma senhora no metrô. Durante todo o fim de semana nevou e nós ficamos divididos entre a vontade de sair para ver a neve e o desconforto do frio.

Parecia que um caprichoso gigante confeiteiro tinha jogado açúcar no austero Petit Palais e nos anjos da ponte Alexandre III. Na Butte Montmartre esquiadores se divertiam descendo o declive em uma paisagem alpina.

Uma bruma se elevava do Sena, cercado por margens brancas e bonecos de neve que saudavam felizes os passageiros do bonde no Boulevard Brune.

Toda a cidade foi banhada por uma luz única, mesmo assim, nenhuma máquina fotográfica foi capaz de registrar de maneira fiel a beleza de Paris coberta pela neve.

Quando acordamos na segunda-feira, ainda sob o efeito do espetáculo do fim de semana, percebemos que ela tinha partido.

E nós, com os olhos mais do que nunca repletos com a beleza única desta cidade, observávamos os últimos flocos de neve se desfazerem lentamente na calçada nos perguntando quando ela voltaria a nos visitar.

Fonte: Blog do Noblat – Ana Carolina Peliz é jornalista, mora em Paris há cinco anos onde faz um doutorado em Ciências da Informação e da Comunicação na Universidade Sorbonne Paris IV.

 Paris Neve

 

Antes que elas cresçam

Affonso Romano de Sant’Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta   dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio  subiam a serra ou iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio  dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.