Champanhe no maxixe

O artigo abaixo foi publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde,  em 10/01/2009 como contribuição para o Ano da França no Brasil, que teve início em abril daquele ano, com cerca de setecentos eventos culturais, econômicos e esportivos em todo país.

Brasil e França: reciprocidade musical

 Leni David

Dois franceses legendários foram os precursores de um lançamento musical cujo nome era inspirado do ritmo brasileiro do Maxixe. Foram eles o compositor Charles Borel-Clerc e o cantor Felix Mayol. O primeiro havia iniciado sua carreira em 1903 e graças ao sucesso da canção de sua autoria, Amour de trottin, a pedido do editor Ricordi, compôs La Machiche (O Maxixe) para Felix Mayol, que se tornou seu parceiro na letra. Anunciada como “uma célebre canção espanhola”, tratava-se simplesmente de um arranjo da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, em ritmo de passodoble à qual foi adaptada uma letra maliciosa.

Em 1908, porém, o verdadeiro Maxixe estreou em Paris com a dupla brasileira Os Geraldos, que se apresentava no Théâtre Marigny. Mas o grande sucesso desse ritmo só aconteceria com a chegada de Duque, Antônio Lopes de Amorim Diniz, baiano, dentista, que havia vivido no Rio de Janeiro como representante farmacêutico e que mudara-se para a França.

OITO BATUTASBon vivant, dono de uma elegância impecável e excelente dançarino, Duque, que frequentava a noite parisiense, constatou o grande sucesso das danças exóticas na capital francesa. Resolveu abrir uma curso de dança em Pigalle, onde dava aulas e graças ao sucesso alcançado apresentava-se dançando Maxixe com suas parceiras, em teatros e cabarés parisienses. Duque foi aclamado como dançarino e logo tornou-se proprietário do Tango Duque Cabaret. Em 1914 foi convidado para inaugurar e dirigir o Dancing Luna Park, onde se reunia a elite parisiense, inclusive o Presidente Poincaré.

O sucesso e o prestígio de Duque, aliados ao patrocínio de Arnaldo Guinle facilitariam a ida dos Oito Batutas para a França, em janeiro de 1922, com contrato para tocar no Dancing Shéhérazade durante um mês. No entanto, seis meses depois o grupo fazia sucesso em Paris e só voltaria ao Brasil em agosto, por “não suportar as saudades de casa” e em razão dos festejos do centenário da Independência do Brasil. Nessa época, o choro e o samba foram as grandes novidades no ambiente musical parisiense. Exemplos bem significativos desse sucesso são as interpretações de Carinhoso, de Pixinguinha, pelo violonista Django Reinhardt, a interpretação da orquestra Ray Ventura et ses Collégiens de Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazaré e de Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu.

Os Oito Batutas em Paris (1921) Acervo da Biblioteca Nacional

 

MAXIXE – Mas é preciso lembrar do compositor Darius Milhaud, secretário particular de Paul Claudel, embaixador da França no Brasil entre 1914 e 1918. De volta ao seu país Millhaud homenageou o Brasil em duas de suas obras: A primeira, de 1919, Le bœuf sur le toit, inspirada do maxixe (Boi no telhado) lançado no carnaval de 1918 no Rio, pelo compositor Zé Boiadeiro, pseudônimo de José Monteiro, e de outros elementos da cultura popular brasileira. A composição de Millhaud foi adaptada para balé por Jean Cocteau e tornou-se posteriormente nome de uma reputada casa noturna parisiense onde o ritmo brasileiro despertava admiração;Le bœuf sur le toitera era frequentado por intelectuais como Apollinaire, Léger, o próprio Cocteau e Darius Milhaud, além de Blaise Cendrars, entre outros. A segunda, Saudades do Brasil, uma suíte para piano, orquestrada posteriormente, foi lançada em 1921.

LA CHOUPETTA – Na realidade, são muitas as adaptações e versões da canção brasileira difundidas na França. Ariane Witkowksky cita uma série de canções brasileiras gravadas por artistas franceses, entre elas, Mamãe eu quero mamar, de Vicente Paiva e Jararaca, adaptada por Maurice Chevalier como La Choupetta, cujo tom malicioso do original em português foi mantido. Em 1938, a marchinha carnavalesca Touradas em Madrid foi adaptada por Maurice Vandair sob o título de Le Matador Pararatcimboum num ritmo semelhante ao do passodoble, executada pela orquestra de Jacques Hélian. Em 1942 foi a vez do cantor Jean Sablon adaptar Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Aves. Ele cantou ainda Peguei um Ita no Norte e Não tem solução de Dorival Caymmi e Ave Maria no morro de Herivelto Martins.

Ainda segundo Witkowsky, a França descobriu os ritmos negros com trinta anos de atraso. Como se não bastasse, também negligenciou a recomendação de Noel Rosa, “o samba não tem tradução em idioma francês”; no entanto, além de traduzir sambas brasileiros, eram  adaptados novos estilos, como o samba-canção e o samba exaltação, muito em voga nos anos 40-50 e até mesmo o baião. Assim, Kalu, de Humberto Teixeira, transformou-se em Kalou e tornou-se quase irreconhecível na interpretação de artistas como Yvette Giraud.

 NACIONALISMO – Outro aspecto importante vinculado à divulgação da música brasileira na Europa diz respeito aos filmes de Walt Disney, produzidos durante a instituição da “política da boa vizinhança”, protagonizada pelo Brasil e Estados Unidos durante a segunda Guerra Mundial. A música produzida nessa época foi marcada por um excesso de nacionalismo e por valores ideológicos e políticos. A “baiana” de Carmem Miranda e os sambas-exaltação eram utilizados como propaganda do Brasil no exterior.

Depois do lançamento do filme de Disney Você já foi à Bahia? – cujo título é o mesmo da canção de Caymmi lançada no Brasil em 1941 – que teve Ary Barroso como responsável por parte da trilha sonora, as canções Aquarela do Brasil, Na Baixa do Sapateiro e Boneca de Pixe, depois de adaptadas para o francês foram cantadas por Joséphine Baker, Luis Mariano e Glória Lasso. Em contrapartida pelo apoio do Brasil ao Estados Unidos, Disney criou o personagem Zé Carioca, parceiro do Pato Donald, que no filme se apaixona pela Iaiá vendedora de quindins, Aurora Miranda, na Praça Cairu (veja vídeo abaixo). Segundo Afonso Romano de Sant’Anna, o nacionalismo tornou-se um dado social e histórico bem típico da música brasileira daquele momento. Este painel sonoro de temas, ritmos e valores ideológicos foram estimulados pelo DIP – Departamento de Informações e Publicidade da ditadura Vargas, principal instrumento de repressão e censura. Certo é que essas canções chegaram à França via Estados Unidos.

Além dos artistas franceses em evidência na época, a brasileira Vanja Orico, famosa pelas canções “folclóricas” interpretadas em filmes nacionais dos anos 50, sobretudo O Cangaceiro, concorreu para divulgar a música brasileira no exterior com canções como Ninguém me ama (Fernando Lobo, Antônio Maria e J. C. Damal) e Maringá de Joubert de Carvalho.

BOSSA NOVA – Dando continuidade a essa febre de versões da música brasileira pelos artistas franceses, por ocasião do lançamento do filme Orfeu de Carnaval em 1958, uma nova onda de adaptações de letras brasileiras tomou conta do ambiente artístico francês. Entre elas o samba Madureira chorou (Se tu vas à Rio) de Carvalhinho e Júlio Monteiro, que  fez bastante sucesso. Ocorre que na sua versão original a letra fazia  uma homenagem à atriz Záquia Jorge que havia falecido vítima de um acidente. Na versão francesa, porém, a letra sugere que “se você for ao Rio não esqueça de subir o morro/ para ver os cariocas na festa do samba/ a mais louca das danças”. O grupo Les Compagnons de la Chanson, além de gravar Madureira chorou (Se tu vas à Rio), também gravou Andorinha Preta, traduzida como Amour brésilien.

Mas a música brasileira na França teria uma ascensão inesperada após o lançamento de Orfeu Negro, ganhador da Palma de ouro no Festival de Cannes em 1958, cujo sucesso projetaria Vinícius de Moraes, Tom Jobim e Luís Bonfá no cenário musical internacional. Nessa mesma época Vanja Orico gravou Manhã de Carnaval e A felicidade, temas do filme, também interpretadas por cantores franceses. Dando prosseguimento a essa ascensão, a Bossa Nova seria consagrada internacionalmente e a França não seria uma exceção. No entanto, após o lançamento do filme Um Homem, uma mulher de Claude Lelouch, em 1966, também agraciado com a Palma de Ouro em Cannes, a Bossa Nova se consolidou de forma definitiva e pôs em evidência um novo artista brasileiro, Baden Powell, que em parceria com Vinícius compôs o Samba da Bênção, um dos temas musicais do filme.

Continuaríamos de bom grado a discorrer sobre os artistas franceses e brasileiros, personagens desse intercâmbio cultural, se o tema não fosse vasto e se tivéssemos espaço para tanto. Desse modo é aconselhável arrematar esse pequeno resumo com um ponto final, haja vista que a trajetória dos artistas franceses no Brasil e dos artistas brasileiros na França, sobretudo a partir de 1966 é bastante rica em detalhes e em parcerias. Assim sendo, retomaremos o tema em outra ocasião.

         

Observação: O jornal A Tarde não publicou as referências bibliográficas, o que faço nesse momento, por achar que elas são fundamentais em qualquer trabalho de pesquisa.

Obras consultadas:

ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 5a ed, 1978.

CABRAL, Sérgio. Pixinguinha, vida e obra. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979.

DREYFUS, Dominique. In PARVAUX, Solange & REVEL-MOUROZ, Jean. (Coordinateurs). Images réciproques du Brésil et de la France. Paris : Ministère de l’Éducation Nationale (France), Ministério da Educação (Brasil, Collection Travaux et Mémoires de l’IHEAL, n° 46, Série Thèses et Colloques, n° 2. 1991, p. 299-307.

EFEGE, Jota. Maxixe, a dança excomungada. Rio de Janeiro: Conquista, 1974.

LOPES, Antonio Herculano. “Um forrobodó da raça e da cultura“. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 21, nº 62, p. 69-83, outubro de 2006.

MILHAUD, Darius. Notes sur la musique. Paris :Flamarion, 1982.

NERONDE, Claude de. Le tango, la maxixe brésilienne. Paris : Librairie et Édition 40, rue de Seine, 1920.

SANTANA, Afonso Romano de, Música popular e moderna poesia brasileira, Vozes, Petröpolis, 1968.

SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante : técnica, ritmos e ritos do Rio.  In: Sevcenko, Nicolau e Novais, Fernando (org) História da vida privada no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

SODRE, Muniz, Samba, o dono do corpo. Codecri, Rio de Janeiro, 1979.

SOUZA, Tärik de. Gostos e rostos da música popular brasileira. Porto Alegre, LPM, 1979.

TATIT, Luiz. A canção – eficácia e encanto, Atual, São Paulo, 2ª ed., 1987.

TINHORÃO, José Ramos. O samba agora vai – A farsa da música popular no exterior. Rio de Janeiro: JCM, 1969.

TINHORAO, José Ramos. Pequena História da música popular. Vozes, Petröpolis, 1978

Witkowsky, Ariane. Cahiers du Brésil contemporain, n° 12. Paris, décembre 1990, p.146-149.