Edmundo Caroso

Achei que, com o Carnaval chegando (o Mardi Gras là na França), Leni tinha gostado homenagear seu grande amigo Edmundo Carôso, escritor e poeta, autor de várias músicas do Carnaval da Bahia. Então publico uma crônica que Leni escreveu para lembrar que amizade de verdade  não enfraquece nem com a distância, nem com o tempo! Denis

Edmundo Carôso

 

SOBRE UMA CARTA QUE RECEBI COM NOVE ANOS DE ATRASO.

Leni David

Tenho um amigo cujo nome é Edmundo Carôso. Conheci esse rapaz em meados dos anos 70, quando era estudante do curso de Letras. Ele estudava Economia e era aluno dedicado, segundo comentavam. Fazíamos parte de um grupo de amigos comuns que gostava de música, poesia, política e violão. Mas Edmundo abandonou a faculdade para se dedicar à música.

Naquele tempo nos reuníamos nos fins de semana para tocar, cantar, beber e comer coisas consideradas exóticas como: maniçoba, mocotó (no bar de Beto), baião-de-dois (feito por mim) e churrasco, cujo fogo até era aceso com cadeiras da sala de jantar. Embora trabalhássemos, não tínhamos muito dinheiro e, na maioria das vezes, nos cotizávamos para pagar o de comer e o de beber.

Essa convivência quase diária do nosso grupo durou cerca de cinco ou seis anos, até que Nadja foi estudar em Saragoça, onde conheceu e casou com Inigo; Edmundo foi para a Espanha algum tempo depois e quando voltou se dedicou à música e à produção cultural em Salvador. Ra Nascimento, parceiro de Edmundo em muitas composições, também trocou a cidade interiorana pela capital e se tornou músico profissional. Alguns se formaram em Direito, outros em Engenharia ou Medicina. Outros, ainda, se tornaram empresários ou pais de família. Eu, do meu lado, recebi uma bolsa do governo francês e fui fazer um estagio na França.

*****

A verdade é que mesmo com a desconstrução do grupo, visto que cada um tomou seu rumo, os encontros (quando aconteciam) e a amizade permaneceram intactos.

Há cerca de três meses encontrei Edmundo novamente, na Internet. Fiquei feliz e escrevi pra ele (sem esperança de receber resposta), pois o blog estava desativado desde o final de 2007. Além disso, havia cerca de nove anos que não nos víamos; a última vez que nos encontramos foi num jantar em sua casa, onde comemos um soberbo Bacalhau à Cravolândia preparado pelo anfitrião. Nessa época eu morava na França e de volta a Paris escrevi para Edmundo. Primeiro, para dar informações sobre Lavoisier, pois ele havia me pedido isso; em seguida, para contar o sucesso que havia sido a degustação do Bacalhau à Cravolândia com a francesada. Realizei a receita com muito esmero e foi um sucesso!

Só que nunca recebi resposta dessa carta. Há pouco tempo, porém, tive uma grande surpresa: Edmundo publicou uma tradução de “O luar de Pontevedra”, poema de sua autoria traduzido por mim e sobre o qual comentei no blog. Nesse final de semana, “vasculhando” os blogs parceiros da Abril encontrei um outro post, “Ainda a propósito de Lene”, onde ele publica uma carta que me escreveu há nove anos atrás! O susto foi ainda maior pois leio o blog de Edmundo diariamente e, por incrível que pareça, não vi essa publicação. Como passei alguns dias “desconfigurada”, peço desculpas ao meu amigo.

Ele inicia o seu texto assim:

“Eu tenho um poema antigo que diz: ninguém me escreve/ eu também/ eu não escrevo pra ninguém”.

“Mentira! Escrevo muito, centenas de cartas, só que nunca as mando.

Dentre estas existe uma que escrevi pra Leni quando ela morava em Paris (e viveu muitos anos por lá) depois de uma passagem dela lá por casa, numa de suas vindas ao Brasil e respondendo a missiva que me mandou logo ao chegar (ou terá sido um email?). Foi nessa ida lá em casa que ela me mostrou a tradução que publiquei aqui e me deu de presente alguns discos como também me fez portador de uns pra Ra Nascimento, meu parceiro e amigo de vida toda.

Portanto, para acabar de vez com essa fama injusta que me persegue, a de não remeter as cartas que escrevo, e mesmo já depois de muitos anos de Leni ter voltado para o Brasil, publico aqui a carta que não lhe mandei, esperando que ela não seja mal educada e me responda de pronto”.

NUNCA REMETI, SÓ PRA MANTER A TRADIÇÃO”.

Querida Leni:

Dessa vez ficou mais do que claro: você se internacionalizou de vez. “Disco duro”. Essa, realmente é fantástica, coisa de primeiro mundo de quem já está arejado pelo clima das Oropas. Aqui nesse mundinho só quem fica duro é pau; e pobre pra não perder o costume. O disco é rígido por essas plagas mas que fica charmoso duro, fica.

Adorei saber que você já deu seu ar de alquimista na receita do Bacalhau a Cravolândia. Nas suas mãos de fadas o fato de não encontrar maxixe em Paris é fichinha. Veja que você, nem se apertou nem nada e já tascou abóbora no manjar. Quem tem talento é assim mesmo, não se aperta com nada. E por falar em talento – nesse caso, culinário e que você tem de sobra – exijo, imponho e esperneio pela receita do Baião de Dois que persegue meus sonhos mais secretos desde quase duas décadas quando nenhum churrasco nos vencia. Lembra que não ficava cadeira sobre cadeira quando faltava carvão na churrasqueira? Pois é, em nome daquela época e desses vinte anos de amizade, me mande a receita e ponto final.

Você vai me dizer que sou um besta e que não cumpro o prometido já que ainda não ouvi Cezária Évora e Buena Vista, que deveria estar em alguma estante lá da Princesa Isabel fazendo Rá Nascimento se intoxicar com alguma coisa, finalmente, diferente de sua própria obra. Continua lá em casa – tudo como naquele dia em que jantamos, rimos e falamos poesia.

No que diz respeito a primeira afirmação você teria razão – ainda que em parte pois, mais que besta – sou um renomado imbecil mas não é por isso que não ouvi Cezária. Tenho andado acorrentado no porão da poesia – já entreguei o segundo livros para a Editora (O Verdume & O Redemunho, que será lançado em Janeiro, tudo por conta dela) e não tenho cabeça pra outra coisa. Vc sabe como é, a música me toma e se eu misturar as coisas babau.

Mas quanto a segunda, a história já é outra: a preguiça de Rá, apesar de que eu tivesse lhe avisado logo no outro dia que tinha encomenda lá em casa, não deixou pegar o disco e já ando pensando em usar a prerrogativa do uso capião e aí ele vai ver uma coisa, o quanto vai ser difícil voltar a ter a propriedade da relíquia.

Agradeço as informações sobre Lavoisier, vão me quebrar um galhão. Na sabia que o dito foi o descobridor do oxigênio. Devemos a ele respirar com conhecimento. Falando sério “Rien ne se perd, rien ne se crée, tout se transforme” será a epígrafe de um livro que já tenho pronto há algum tempo que se chama Cadernos Lavoisier Exatamente nesse espírito de se reaproveitar todo o possível é que revi meus poemas mofados na gaveta, que não cabiam em nenhum dos livros que tenho terminado e os reuni nessa salada pela qual tenho muito carinho. A ópera da Cidade faz parte dele. Aliás, cadê o original que ficou de me mandar? Vê se você escaneia e me remete por email. Não tenho o dito cujo. Retrabalhei o poema numa versão posterior a primeira.

Por falar em poema, a primeira vista, depois de ter pedido a alguns amigos que sabem rudimentos de francês para ler a tradução pra mim, adorei. Mas gostaria, com a sua permissão de interagir um pouco com você no resultado final. O francês é um idioma lindo e você me deu muita honra e alegria ao traduzir meu poema de forma tão bela.

Vou pedir a Lu para ler pra mim pois naquela construção poética, o ritmo, mas do que tudo e a todo custo, terá de ser preservado. E me parece que, pelo menos no primeiro verso quando vc opta por utilizar “Le clair de lune” compromete um pouco o ritmo da frase o que já não acontece em “Ah, clair de lune de surprises !” Talvez aí esteja o segredo: a alternância entre “le lune” e “clair de lune”, quando necessário, que dará mais charme a tradução preservando seu ritmo. Falo tudo como um leigo que foi assessorado por alguns gagos lendo em Francês. Sinceramente terei que conversar com Lu, dissecando tudo para chegar a uma conclusão mais sólida. Quanto ao conteúdo, pelo menos sobre o ponto de vista dos animais que me assessoraram na tradução literária, me parece que você conseguiu deixar intacto. De todas as maneiras, fiquei muito feliz, você, não importa o que aconteça com minha arte de agora por diante, será sempre a primeira pessoa que me traduziu pro Francês.

Para terminar, quero fazer dois pedidos. Leninho, querida amiga, prometa que nunca mais deixaremos nossa amizade fenecer no mar tão rico de nossas virtudes e defeitos. Nos amamos muito e isso é o que importa e – se não somos perfeitos – temos que sublimar também as imperfeições do outro. O que importa de verdade é que somos amigos e irmãos, e isso basta. Falo essas bobagens mas por mim do que por você, que tem um coração de ouro e sempre foi mais gente do que eu.

Outra coisa: gostaria muito de manter regular correspondência (troca de e-mails) falando de tudo que nos venha ao coração: da cultura, dos filhos, da vida, dos amores e de nós mesmos. Sem esquecer a música que sempre foi nosso elo.

NUNCA REMETI, SÓ PRA MANTER A TRADIÇÃO.

Problema de troco

Leni David

Seu João era conhecido como “mão de onça” na cidade em que vivia. Era um senhor alto, pele clara, olhos acinzentados, cabelos cortados curtos, voz de trovão. Não sei se tinha esse apelido porque tinha as mãos grandes, ou se tinha algo a ver com sovinice. Só sei que ninguém ousava chamá-lo assim. Apesar da sua fama de briguento, Seu João era muito querido na cidade.

Havia um café na praça principal, onde os fazendeiros da região se reuniam para conversar e negociar, sobretudo pela manhã. Em frente ao café havia uma banca de jornais e Seu João pegava o seu jornal, todos os dias, antes de ir para casa almoçar. Dobrava-o ao meio, enfiava debaixo do braço, ajeitava o chapéu no alto da cabeça e entrava na sua Rural Willys.

A mania de substituir o troco por bombons começou a ser disseminada, mesmo nas pequenas cidades do interior e o dono da banca de jornais adotou-a. No primeiro dia em que Seu João recebeu aquele troco inusitado, perguntou quanto valia aquilo e o vendedor informou que era equivalente a vinte centavos (de cruzeiro) o que, finalmente, não valia muita coisa.

O tempo passava, Seu João comprava o jornal e colocava as balinhas que recebia como troco, no bolso do paletó. Em casa depositava-as num recipiente sobre a escrivaninha e avisava aos familiares que não tocassem nos bombons, pois precisaria deles.

Um dia ele chegou à banca de jornais e perguntou:

– Quanto é o jornal, Seu Pelé?

E o vendedor, apesar de surpreso, respondeu solícito:

– Dois cruzeiros e oitenta centavos, Seu João!

Ele enfiou a mão no bolso, retirou um punhado de balas, que depositou sobre as revistas, e pediu ao vendedor:

– Confira aí, Seu Pelé; veja se é isso mesmo.

O vendedor arregalou os olhos, espantado e, sem entender o que se passava, questionou:

– Mas o que é isso, Seu João, pra que eu quero esses bombons?

– Ora, Seu Pelé, durante todo esse tempo o senhor me deu essas balinhas como troco. Já que elas valem dinheiro, guardei-as para pagar o jornal. Algum problema?

Seu Pelé coçou a cabeça, em silêncio, e recebeu os bombons.

Agora respondam: Seu João era sovina, ou sabia valorizar o seu dinheiro?

Delírio

Leni David

Estou só, triste e ouço o silêncio da madrugada fria. Um pássaro noturno pia agourento e um pressentimento macabro sacode o meu corpo, provoca calafrios. A solidão me angustia e busco desesperada uma presença. Pensar me atormenta e a certeza do efêmero, da morte, incute-me no espírito a insegurança. Fecho os olhos, abandono-me à impotência e sinto as lágrimas deslizarem pelas faces, salgadas e amargas…

Ouço um assobio triste que passa pela calçada molhada e ele preenche o espaço da rua deserta. Espio pela fresta da janela; a brisa leve que acaricia as árvores parece ensaiar um balé inusitado; escuto o assobio e aquela a melodia suave transporta-me para longe, leva-me para o mar. A noite é clara e o reflexo da lua branca argenteia a imensidão das águas. Respiro forte e me embriago com o cheiro forte da maresia. Abro os braços em cruz, fecho os olhos e corro descalça pela areia branca, sem rumo, sentindo a carícia da brisa leve que acaricia meu rosto, o sussurro do mar é cúmplice da minha folia e me convida para dançar sobre as vagas. Faço piruetas, dou saltos no ar, danço uma dança desvairada com as águas; solto o corpo ao sabor das ondas e deixo-me levar, ora submersa, ora flutuando acariciada pela espuma macia.

Fatigada, rolo na areia molhada e escuto o mar, companheiro e cúmplice de aventura, mas a maresia me inebria e flutuo num barco a vela, solto, perdido. À luz da lua ouço o canto da sereia e sonho que adormeço… desperto com reflexos encarnados que iluminam a terra, empurram as sombras, desnudam a vida. Minhas roupas estão rotas e sujas, molhadas. Sinto frio e fome e volto para a minha janela onde passam homens em busca do sustento, adolescentes felizes, mulheres sofridas, vagabundos, bêbados e vira-latas famintos; crianças sorrindo a caminho da escola.

Pinto um sorriso no rosto, ponho roupas no corpo, responsabilidades na bolsa e vou trabalhar. Planejo, praguejo, grito e silencio. O que fazer do meu Amor? Perdida, retorno ao meu silêncio de pedra, de máscaras. A noite chega novamente e no aconchego da solidão entrego-me aos desvarios, esperando o tempo passar.

A nevasca

Leni David

     Nas minhas andanças por aqui encontrei a crônica que publico abaixo, esquecida numa gaveta, gravada num disquete. Embora esteja aproveitando o sol gostoso do verão francês, de férias e curtindo tudo que tenho direito, vou publicá-la no blogue com o objetivo de resgatá-la.

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 A nevasca

      Às dez da manhã o telefone tocou. Era uma brasileira que havia chegado a Paris naquela manhã. Ela buscava informações a respeito de uma pós-graduação e pedia sua ajuda. Tinha conseguido o seu número de telefone por intermédio de uma amiga que morava na Bahia e que também era sua amiga. Para quem vive no exterior, a visita dos amigos queridos reconforta o coração. Mas quando se trata de receber amigos dos amigos, o prazer se transforma em dever.

      É preciso lembrar que na Europa as pessoas não são muito disponíveis. Elas trabalham, cuidam dos filhos, da casa, das compras e da cozinha. Mesmo os idosos e as pessoas abastadas não costumam ter serviçais. Até o lixo, cada um transporta o seu até o subsolo do prédio, de onde é recolhido pelo responsável por este serviço. Quem tem filhos pequenos, contrata uma baby-sitter para tomar conta das crianças quando vai ao teatro, ou a um jantar em casa de amigos; senão, contrata-se uma faxineira para trabalhar quatro horas por dia, pois o custo desse privilégio tem um custo semanal de cerca de meio salário mínimo em moeda brasileira. Apesar do frio glacial que fazia naquele mês de janeiro, ela estava de folga e concordou em encontrar a visitante num Café da Praça da Sorbonne, próximo ao hotel onde ela estava hospedada. Combinaram as roupas que vestiriam e concordaram em levar nas mãos uma revista brasileira para facilitar a identificação.

      Como os outros membros da família almoçavam nos locais de trabalho e de estudo, almoçou rapidamente e preparou-se para enfrentar o frio. Desceu a rua que dava acesso ao ponto do ônibus, de onde se tinha uma linda vista de Paris nos dias claros e ensolarados. Naquela tarde, porém, a paisagem era lúgubre, tendo como pano de fundo um céu cinzento, quase branco; a cidade parecia envolvida numa cortina de fumaça. As árvores nuas mostravam galhos ressequidos e espetados que lembravam mãos voltadas para o céu, como se pedissem socorro. E o vento gelado dava alfinetadas no rosto e maltratava os olhos.

      O ônibus que lhe levaria ao centro da cidade era de grande valia pois dispensava o uso do metrô, num momento em que as ameaças de atentados eram constantes. Reconfortada pelo aquecimento do veículo, olhava a rua, as vitrines decoradas e as pessoas que passavam encolhidas, sérias, vestidas com roupas escuras. Chegou ao Café e instalou-se numa mesa próxima à entrada. Pediu um cafezinho e deixou a revista brasileira sobre a mesa. Logo depois entraram duas jovens senhoras e ela adivinhou, vendo as roupas que vestiam, que uma delas era a pessoa com quem havia marcado encontro: calças jeans, tênis, muitas blusas sobrepostas que davam um aspecto recheado ao corpo e um casaco antigo, muito largo. Esse tipo de indumentária, era o “uniforme”, preferido pela maioria dos brasileiros que visitavam Paris. Elas sentaram-se numa mesa próxima e uma delas retirou da sacola uma revista brasileira. Não teve dúvidas; aproximou-se, identificou-se e cinco minutos depois já conversavam e tomavam vinho quente como se já se conhecessem há muitos anos.

      Pode ser exagerado repetir que o frio era glacial, mas, a cada vez que alguém entrava ou saía do café, uma rajada de vento frio invadia o recinto; preferiram, então, continuar conversando ali. A conversa estava animada quando, olhando através do vidro, uma das brasileiras comentou, num tom alegre, se os floquinhos brancos que caiam rua eram neve. Olhou para a rua e constatou que começara a nevar; a visitante ficou maravilhada pois embora já tivesse visitado a Europa em outras ocasiões, aquela era a primeira vez que via a neve cair.

      Pensou nos transtornos que a neve provocava na cidade, apesar de ser linda, mas não fez nenhum comentário. Lembrou que muitos se machucam porque as calçadas ficam escorregadias; lembrou da mistura de areia e sal que pulverizavam nas ruas para permitir a circulação de veículos e do lamaçal abominável que se formava em poucos minutos. Pensou em outros inconvenientes, mas preferiu dizer que a neve era muito bem-vinda quando se estava numa estação de sky, ou instalado diante de uma lareira, com bons livros para ler, amigos para conversar e um chocolate fumegante para saborear.

      Quando a calçada se cobriu totalmente de branco, alguns jovens começaram a formar bolas que atiravam nos companheiros. Riam muito, escorregavam, corriam numa algazarra descontraída. Então a brasileira comentou, como se conseguisse ler seus pensamentos negativos, que apesar do frio medonho, as pessoas conseguiam se divertir. Concordou com ela e aceitou a incumbência de fotografá-la na paisagem nevada.

      Eram cinco e meia quando decidiu voltar para casa. Despediu-se das brasileiras prometendo que se encontrariam dentro de dois dias e deixou-as na entrada do Jardim de Luxemburgo, onde algumas crianças modelavam bonecos engraçados, daqueles que ilustram os cartões de boas-festas. As visitantes estavam embevecidas com a paisagem branca da cidade e decididas a comprar mais filmes para novas fotografias e a jantar olhando a paisagem através da vidraça de um restaurante próximo ao hotel onde estavam hospedadas, ali mesmo, no Quartier Latin. Andou na direção do ponto de ônibus e levantou o cachecol de lã para proteger a boca e o nariz, dormentes, como se estivessem anestesiados. Apesar de manter as mãos enluvadas nos bolsos, a sensação de frio era intensa e os pés doloridos incomodavam devido aos sapatos leves que usava, inadequados para aquele tempo.

      Numa cidade onde os ônibus são pontuais, aquele demorava a chegar. Impaciente, decidiu voltar de metrô pois começava a escurecer. Desceu em Montparnasse onde faria a conexão para a linha do seu bairro. A estação de Montparnasse estava cheia e as pessoas andavam apressadas pelos corredores. De repente ouviu-se os altos-falantes anunciarem a suspensão dos serviços do metrô em algumas linhas externas, pois a nevasca havia provocado panes na rede elétrica.

      Resolveu telefonar para a empresa onde o marido trabalhava e pedir para que viesse busca-la, mas ele estava em reunião e o colega que atendera ao telefonema prometera dar o recado, caso o encontrasse ainda, visto que já passava das dezoito horas. Concluiu que era preciso agir rapidamente e sair da estação para pegar um ônibus, ou mesmo um táxi. Enquanto esperava no ponto tentou ligar para o marido, mais uma vez, mas o telefone público não funcionava. Decidiu andar até o ponto seguinte, onde talvez houvesse mais opções. Andava como se estivesse pisando em pregos, os pés enrijecidos pelo frio. Tentou telefonar mais uma vez. Inútil! O telefone do trabalho não respondia. Decidiu ligar para casa e deixar uma mensagem na secretária eletrônica; possivelmente ele já estaria lá e certamente viria ao seu encontro.

      O tempo passava, a neve caía cada vez mais forte e ela constatou que só chegaria em casa se encontrasse um táxi. No entanto, eles também haviam desaparecido. Começou a desesperar-se. Entrou num café e pediu um chocolate, mas as mãos estavam tão dormentes que dificultavam até o manuseio da xícara. Foi ao sanitário e abriu a torneira de água quente deixando o líquido escorrer sobre os dedos, na esperança de diminuir o desconforto. Reconfortada pela bebida quente, decidiu continuar a caminhada em busca de um transporte. Numa esquina viu um táxi do qual descia um passageiro e precipitou-se na direção do veículo; o motorista impediu-a de entrar, explicando que acabara de dispensar um cliente pois não havia condições de circular na cidade devido ao engarrafamento e aos acidentes. Ele tencionava ir para casa. Ela perguntou onde morava e ele respondeu que morava em Choysi. Sorriu esperançosa pois o caminho para Choysi era o mesmo da sua residência; assim, convenceu o motorista de que não custava nada conduzi-la; ele concordou em leva-la, mas sem nenhuma garantia de que chegariam ao destino.

      Já instalada e agradecendo a Deus por ter lhe concedido a graça de encontrar ajuda naquele momento de aflição, escutou no radio do carro que a cidade estava completamente paralisada. Várias linhas de metrô haviam sido interditadas e os ônibus impossibilitados de circular, mesmo com correntes nos pneus. Falava-se nos esforços da prefeitura diante daquela nevasca imprevista, mas quase nada podia ser feito pois os caças-neve não podiam circular devido ao congestionamento do trânsito. Acreditou que tinha muita sorte, já aquecida e instalada confortavelmente, à caminho de casa.

      O carro rodava a dez quilômetros por hora. O barulhinho dos pneus na neve fresca era macio e agradável de ouvir. Rodaram cerca de quinhentos metros, mas logo ficaram bloqueados. Passaram cerca de vinte minutos sem sair do lugar. De repente, o telefone do motorista tocou e depois de falar durante algum tempo, ele avisou: “infelizmente, a senhora vai ter que descer. Vou estacionar o carro na primeira vaga que encontrar e vou dormir num hotel; a direção da empresa nos proibiu de circular.”

      Engoliu a vontade de chorar e desceu do carro. Entrou num Café em Gobelins, com a intenção de telefonar para casa, mais uma vez. Já passava das dezenove horas e dessa vez, a sua filha adolescente respondeu ao apelo telefônico. Seu pai ainda não havia chegado e ela explicava que também tinha sofrido para chegar em casa na volta da escola e aconselhou, com naturalidade, que só havia um meio de voltar para casa: fazer o percurso andando, pois não havia transporte e a camada de neve já atingia os 40 centímetros. Entrou em desespero; era impossível andar cerca de cinco quilômetros açoitada pelo vento, pela neve e tremendo de frio. Era impossível! Quis chorar, mas mesmo as lágrimas pareciam congeladas.

      Mais uma bebida quente num Café do caminho, mais um quarteirão de caminhada; outro Café, outra caminhada; mais um esforço, muita revolta e muitas injúrias balbuciadas ao vento. Os Cafés fechando as portas e os aparelhos telefônicos cada vez mais mudos… finalmente, cerca de duas horas depois, chegava à estação de metrô do seu bairro onde uma pequena multidão se aglomerava. Pessoas idosas, mães carregando crianças; crianças chorando; adolescentes sorridentes numa algazarra infernal. Novas tentativas para usar os telefones públicos, mas diante deles as filas se alongavam pelos corredores da estação. Na lanchonete não se encontrava mais nada de comer ou de beber. Decidiu que ficaria ali pois não tinha mais condições de fazer qualquer esforço físico e para chegar à sua casa havia ainda cerca de um quilômetro e meio de caminhada. Sentia fome, sede, frio e revolta. Preferia imaginar que logo seu marido chegaria em casa e que certamente viria buscá-la. Resolveu entrar na fila do telefone, e após meia hora de longa espera, a filha insistia para que fizesse mais um “pequeno esforço” pois a avenida que dava acesso ao metrô estava completamente bloqueada e mesmo que seu pai já estivesse em casa, seria impossível chegar até lá. Decidiu então que só sairia dali quando a nevasca acabasse.

      Colocou o fone no gancho e acomodou-se num canto para proteger-se do vento frio. Uma mulher loura, simpática e bem vestida aproximou-se; começou a conversar, coisa que não era muito natural por ali. Contou a sua maratona para aquela desconhecida amável e pensou que quando as pessoas estavam em dificuldade, se tornavam solidárias. A loura disse que o seu marido estava estacionado perto dali e que eles poderiam lhe dar uma carona, desde que ela concordasse em utilizar caminhos secundários, que alongariam o percurso; mas, como moravam num bairro próximo ao seu, não custava nada transportá-la. Agradeceu comovida e aceitou a oferta; andaram uns trezentos metros sobre a neve alta. Entraram numa camionete que estava estacionada ao longo do meio fio. A loura havia dito que morava depois de Clamart, desse modo passaria perto da sua residência, de onde andaria mais uns cem metros e estaria a salvo no aconchego do seu lar.

      A camionete potente começou a circular por ruas secundárias, cheias de obstáculos. Tentou conversar com os benfeitores, mas eles não alimentaram a conversa. Mas começaram a falar entre si, numa língua estranha, que poderia ser russo, polonês, dinamarquês… mas certamente uma língua diferente que jamais escutara antes. No carro havia um equipamento que transmitia mensagens e, de vez em quando, uma delas interrompia a conversa dos dois. Tentou convencer-se de que estavam usando ruas secundárias para evitar o congestionamento. De repente, avistou o mercado de Clamart onde costumava ir aos sábados. Constatou que a sua rua havia ficado para trás há muito tempo. Disse ao casal que estava perto de casa e que queria descer ali. Foi ignorada.

      Tornou a repetir que precisava descer pois já estava longe da casa; a loura então perguntou se ela tinha dinheiro para pagar a corrida; perguntou quanto custaria e disse que tinha apenas um pouco de dinheiro na bolsa. A loura olhou na sua direção e respondeu que custaria caro, muito caro. Abriu o porta-luvas e mostrou-lhe um revólver. Ela emudeceu, sentiu um aperto no coração e pediu ajuda ao seu anjo-da-guarda, em silêncio: “Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador… Entraram por uma avenida larga, conhecida, que dava acesso à estrada de Orleans. O homem, num sotaque carregado, anunciou que na saída da cidade havia um caixa eletrônico. Sentiu medo pois seu saldo bancário era insignificante e tremeu mais ainda, quando imaginou que poderia ser maltratada e até assassinada.

      O trânsito da avenida era denso e desordenado. Os carros rodavam lentamente. Via as pessoas que estavam em outros carros e olhava para elas com olhos de desespero; seu olhar devia traduzir uma imagem medonha, porque as pessoas olhavam para ela com um ar encabulado e começavam a dizer coisas que ela não escutava, pois, os vidros estavam fechados. Começou a chorar compulsivamente, muito alto, como uma criança aterrorizada. O marido da loura falou qualquer coisa num tom brusco e ela replicou, nervosa, olhando para os lados e fazendo gestos com as mãos. Concluiu então, que era melhor morrer ali, diante de todo mundo, do que num local deserto e escuro, onde poderia ser vitima de crueldades. Os carros se deslocavam lentamente e ela pedia a Deus que o engarrafamento continuasse, enquanto chorava um choro incontrolável que chamava a atenção dos ocupantes dos outros veículos. De repente a loura gritou descontrolada: “Fora daqui! Desça do meu carro! Saia! Saia logo, você é louca! Saia!!! Fora!!!”

      Abriu a porta da camionete e caiu de joelhos; tentou levantar-se, mas as pernas não obedeciam. Como um animal rastejou sobre a neve, até que num esforço desesperado conseguiu ficar de pé e chegar, cambaleante, ao outro lado da rua onde havia um Café na esquina. Ofereceram-lhe um grog, uma mistura quente feita à base de rhum e perguntavam-lhe o que havia acontecido. Descabelada e suja, com a voz embargada pelas lágrimas, resumiu a sua aventura para um grupo de pessoas que se encontravam no local. Um motorista de táxi ofereceu-se para transporta-la, mas sem garantia de que chegariam até a sua casa. Entrou no carro chorando e escutou o motorista repetir que já estava tudo bem, que não havia mais razão para chorar.

      Conseguiram chegar nas imediações da sua residência por volta da meia-noite, mas teve que caminhar umas duas quadras com um pé descalço, pois na fuga desesperada havia perdido um dos sapatos. Entrou no prédio achando que tinha vivido um pesadelo. Sentia-se ridícula com aquele pé descalço, uma Cinderela pelo avesso! Entrou em casa e viu a sua filha que assistia televisão deitada no sofá. O seu pé esquerdo estava completamente morto, congelado. As unhas completamente roxas. Seu marido ainda não dera notícias. O que teria acontecido com ele?

SDC10630

      Meia hora depois ele chegava contando as suas peripécias; havia deixado o trabalho às dezoito e trinta, mas ficara bloqueado, além do carro ter deslizado na neve e machucado o pára-choques. Tentou relatar a sua aventura, mas os dois estavam cansados e não ficaram impressionados com a narrativa. Todos haviam passado por grandes dificuldades e o sofrimento do outro era sempre insignificante se comparado ao seu. Tomou um banho e uma sopa quente e foi para a cama chorar baixinho. Sentia-se a mais injustiçada das criaturas, a mais incompreendida das mulheres, a maior vitima da natureza. Ao mesmo tempo sentia-se reconfortada por ter escapado ilesa e por ter encontrado ajuda. As pernas doíam em conseqüência do esforço físico; os pés, doloridos e inchados. A cabeça também doía. E o coração doía mais ainda ao constatar, que além de vítima das intempéries havia sido vítima da sua tolice, da sua ingenuidade. Será que eles haviam acreditado na sua história? Seu marido dissera que era uma aventura mirabolante…

      Preferiu acreditar que tudo aquilo não passou de um pesadelo e que ao despertar sob o calor aconchegante do edredom do seu leito, vislumbrava lá fora a cidade majestosa, decorada como um magnífico bolo confeitado, todo branco.

      Châtillon, 29 de março de 2005

Epifânio Nunes da Silva ou Manuel Nunes dos Reis?

 

Leni David

 Não importa. O essencial é que ele foi e continua sendo o “Tio Pifânio”, rei negro das crianças daquela rua, o maior contador de historias da cidade!

– Chega negrada!!! Era um apelo estridente e alegre acompanhado de uma gargalhada. Todos corriam na direção do apelo, até mesmo as empregadas e as crianças da vizinhança. E como era bom correr, com todas as forças, chegar em primeiro lugar e receber como recompensa, um bago de jaca, um punhado de amendoim e um pedaço de rapadura; quanta folia, risos e algazarras Epifânio tacha para nós. Como era bom e como sinto saudades daquele tempo!

Éramos dez irmãos e a nossa meninice corria mansa e despreocupada. Espalhávamos alegria pelo quintal, espaço de liberdade, de alegria, gangorras, minas e esconderijos; as pessoas mais velhas se contentavam em nos observar de longe e nem nos dávamos conta de que haviam olhos voltados para nós. Jogávamos castanha, bolas de gude, pulávamos macaco e fazíamos “cozidos” nos dias de feira. Mas todo esse mundo encantado era esquecido quando Epifânio chegava no portão da casa grande da rua da Aurora e nos chamava, com toda a força dos seus pulmões: Chega negrada! Não havia quem resistisse àquele chamado. Sabíamos que na segunda-feira, dia da feira-livre da cidade, ele recebia o pagamento da semana e a qualquer momento chegaria sorrindo, falando alto, repartindo delícias que trazia escondidas nos bolsos do paletó e no bocapiu de palha, entre risos, tropeços, numa grande algazarra.

Lembro-me dele como se ainda estivesse aqui, diante de mim; tinha estatura média, era negro, bem negro, olhos pequenos e sorridentes; os cabelos encarapinhados, cortados bem curtos, já estavam matizados de fios brancos, mas não escondiam o seu ar bonachão e maroto. Quando falava, tinha um jeito de virar o rosto para o lado, levantar o chapéu e sorrir, coçando a cabeça, sempre exagerando no tom da voz e nas gargalhadas sonoras. Usava calças pretas, de “casimira”, calças velhas e desbotadas, que deviam ter pertencido ao meu avô; um velho paletó, seu companheiro encena no inverno e no verão e um velho chapéu de baeta amarrotado. Epifânio não resistia a uma “cachacinha” e a um “trielétrico”. Bebia e dançava durante os três dias da Micareta e, na quarta-feira, acordava queixando-se de dor nos rins e no fígado. Epifânio era analfabeto; jamais lhe ensinaram a ler e a escrever; entretanto, apesar de não ser eleitor, participava ativamente de todas as campanhas políticas, discutindo e argumentando, com seriedade, e defendia os seus candidatos.

Epifânio se dizia irmão do meu avô; a sua mãe que era escrava ama de leite, amamentara os dois; então, Epifânio “exigia” que o chamássemos de tio. Meu avô e ele foram criados juntos na roça e cresceram amigos, mas com destinos diferentes. Mesmo a casa onde morava, não lhe pertencia. Sabia trabalhar e fazia tudo que lhe ordenavam: cavava fontes, lavava automóveis, era ajudante de pedreiro, carregador e nos fins de semana trabalhava na roça, plantando milho e feijão. Entretanto, a sua grande especialidade era contar casos, lindas histórias que enfeitaram as nossas vidas de crianças. Ele fechava os olhos e as palavras brotavam da sua boca como riacho correndo. Nós, o seu auditório, permanecíamos imóveis, quase sem respirar, bebendo as palavras como se fossem uma poção mágica. Conhecíamos as histórias de Tristão e Isolda, dos Cavaleiros da Távola Redonda, além das lendas da Gurunga, que só ele conhecia e as histórias de assombração. Quando ficava cansado, levantava alvoroçado e recitava em voz alta:

« Era um dia,
um dia foi,
quem não tem cavalo
monta no boi…
Entrou por uma porta,
saiu pela outra
quem quiser,
que conte outra… »

 E saía correndo, a meninada acompanhando e pedindo mais uma historinha, uma só, bem pequena!

Epifânio gostava de pedir dinheiro emprestado à minha mãe e aos meus tios, quantias insignificantes; mas, quando fazia o pedido, assumia um ar sério e se comportava como se fosse uma grande soma, fazendo questão de garantir que pagaria na segunda-feira; nunca mais lembrava de pagar!

Ele acompanhava todos os enterros da cidade; o chapéu entre as mãos, cabisbaixo, contrito e muito sério; e descrevia com todos os detalhes o enterro dos ricos, “uma das coisas mais bonitas de se ver”, na sua opinião.

Ele não estava muito velho, mas estava adoentado. Não fazia mais trabalhos pesados; fazia compras para a minha avó e acompanhava meu avô nas viagens à fazenda. Depois de algum tempo passou até a morar em casa deles.

Uma das coisas que mais gostava de dizer é que tinha dois nomes: Epifânio Nunes da Silva e Manuel Nunes dos Reis. Dizia que o verdadeiro nome era Manuel Nunes dos Reis, pois havia nascido no dia da festa de Reis; no entanto, no dia do batizado, a sua madrinha resolvera chamá-lo Epifânio por ser o dia da festa da Epifânio.

Contava também que aos 20 anos comera meia lata de formicida, um inseticida conhecido, utilizado para matar formigas e fatal se ingerido pelo homem. Mas ele, apesar disso, escapara. E quando perguntávamos porque havia feito isso, respondia que fizera isso, pois não queria casar-se com Brite (seu verdadeiro nome é Balbina). Segundo ele, alguém já havia “bulido” com ela antes dele e que D. Pombinha, que era decidida e corajosa, fora buscá-lo em São José das Itapororocas, para casá-lo num prazo de 24 horas. Como não queria casar, comeu veneno; como não morreu, casou-se. Contam que o veneno foi expelido pelos poros.

Brite e Epifânio viveram juntos e brigaram até pouco tempo. Dessa união nasceram sete filhos: Jove, Crispim, Tenô, Cristino, Jodita, Vadin e Maro. Era como os chamava.

Hoje, escrevendo, sinto uma grande saudade de você, tio Pifânio, uma saudade daquelas que doem, que maltratam, daquelas que fazem a gente sofrer. Você foi embora, tio Pifânio, de mansinho, sem pedir licença, sem fazer barulho. Você fez isso enquanto todos dormiam. Você não gostava de despedidas…

As nossas crianças, tio Pifânio, vão crescer sem ouvir as suas histórias. Os nossos meninos e meninas precisavam ainda aprender a comer bagos de jaca e punhados de amendoim torrado misturados com rapadura. Você precisava ainda espalhar a felicidade entre eles, e enfeitar as suas meninices com o seu amor!

Sabe tio Pifânio, no dia do seu enterro lembrei daquelas coisas que você sempre dizia: “Eu já tenho a roupa do meu enterro; foi Carlito quem me deu. sei que pra o mosulé eu num vô, lá é lugar de rico; mas eu sei que vocês, cada um, vai levá uma flor pra minha cova e que vão pedi pra Jesus, pra me arranjá um lugazino bom perto dele; vocês sabia qui prece de criança Deus escuta?

Você achava bonito os enterros dos ricos e fizeram um parecido para você, tio Pifânio, « com coroa e caixão envernizado, da moda » como você gostava de dizer. O mausoléo Pifânio, que você ajudou a construir com o suor do seu rosto, hoje serve de berço para os seus ossos e você nem queria ir prá lá… Você pedia para enfeitarmos a sua sepultura com flores e nós lhe escutamos; e pusemos lá, não só os bouquets viçosos de saudades, flores liláses e tristes, testemunho do sentimento de quem fica, mas também os nossos corações de crianças.

Sabe por que, tio Pifânio? Porque prece de criança Deus escuta e atende e eu, cresci muito e esqueci muitas coisas importantes.

Adeus, meu velho, descanse em paz!

Feira, 02/05/71