A crônica e uma história de bem-te-vi

Quando Pero Vaz de Caminha registrou, no ano de 1500, a chegada dos portugueses ao Brasil, escreveu uma crônica que mais tarde se transformaria em documento, uma espécie de certidão de nascimento do país: a famosa “carta de Caminha”, dando contas da nova terra descoberta. Nos séculos XVI e XVII e até meados do século XVIII, convencionou-se classificar qualquer relato como crônica (cronos), impingindo ênfase ao conceito de tempo.

A crônica, que nasceu com o relato de fatos, viagens e  descobertas, tem sua origem moderna no jornalismo. Ela ocupa um espaço importante no cotidiano urbano e pode encerrar informações de toda natureza, pois através dela o cronista ou comenta um estado de espírito, comenta ou descreve uma época, um fato, uma curiosidade, uma moda, enfim, aspectos do cotidiano, que muitos vezes passa despercebido ao leitor desavisado. Como uma câmera fotográfica, a crônica captura os instantâneos do dia-a-dia e os traduz em textos literários, pois o seu princípio básico é circunstancial.

No Brasil, a crônica ganhou status literário no século XX e teve o seu tempo áureo a partir da publicação dos suplementos culturais dos grandes jornais. Na sua primeira fase teve Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira como nomes de destaque. Posteriormente, cronistas como Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Raquel de Queiroz, Carlos Heitor Cony, Cecília Meireles, entre outros, concorreram para fixar o gênero, hoje tão difundido.

Margarida de Souza Neves afirma que é na crônica que se observa o cotidiano, da sociedade, pois ela revela os sentimentos, as paixões de momento e tudo aquilo que permite identificar o rosto humano da história. É como se a crônica fosse a exata reprodução do instante em que ocorre o fato ou a circunstância captada pelo escritor.

Em História de bem-te-vi, escrita há cerca de cinquenta anos, Cecília Meireles não só fixa uma realidade daquele momento, capta o instante, rememora outros, denuncia o que lhe parece esdrúxulo, tudo isso inspirado no canto de uma avezinha simplória que vive voando por aí, sem chamar a atenção de ninguém.

 

 

                             História de bem-te-vi

                                                                       Cecília Meireles

Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa só de jardim zoológico; e outras até acham que seja apenas antiguidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto ainda existem bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que tenha uma árvore. Bom será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto palácio verde podem morar muitos passarinhos.

Os velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e sabiás, maracanãs e “querejuás todos azuis de cor finíssima…”. Nós esquecemos tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é leitura…

Mas há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar.

E é pena, pois com esse nome que tem — e que é a sua própria voz — devia estar em todas as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, para no momento oportuno anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e sob forma tão inocente e agradável que ninguém se aborreceria.

O que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a observar na sua voz. O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: “…te-vi! …te-vi”, com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras achei natural que também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano.

Logo a seguir, o mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão — como posso saber, com a folhagem cerrada da mangueira? — animou-se a uma audácia maior Não quis saber das duas sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali, invisível e brincalhão: “…vi!  …vi! …vi! …” o que me pareceu divertido, nesta era do twist.

O tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez tenha voado com o seu team de futebol — que se não há de pensar de bem-te-vis assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os lemas dos seus brasões? Talvez tenha sido atacado por esses crioulos fortes que agora saem do mato de repente e disparam sem razão nenhuma no primeiro indivíduo que encontram.

Mas hoje ouvi um bem-te-vi cantar E cantava assim: “Bem-bem-bem…te-vi!” Pensei: “É uma nova escola poética que se eleva da mangueira!…” Depois, o passarinho mudou. E fez: “Bem-te-te-te… vi!” Tornei a refletir: “Deve estar estudando a sua cartilha… Estará soletrando…” E o passarinho: “Bem-bem-bem…te-te-te…vi-vi-vi!”

Os ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido uma coisa assim! Mas as crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram, pensaram e disseram: “Que engraçado! Um bem-te-vi gago!”

(É: talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira…)

Texto extraído do livro Escolha o seu sonho;Rio de Janeiro:Record, 2002, pág. 53.

Um poema de Antônio Brasileiro

CONTEMPLAÇÃO DA NUVEM                         

 Antônio Brasileiro
p/ Beto

A vida é a contemplação daquela nuvem.

E o mundo

uma forma de passar, que inventamos

para não ver que o mundo não é o mundo,

mas uma nuvem

                           passando.

E uma nuvem passando

ensina-nos mais coisas que cem pássaros

mil livros       um milhão de homens.

A vida é a contemplação daquela nuvem.

E o mundo

uma forma de passar, que inventamos

para não ver que o mundo não é o mundo,

mas uma nuvem.

Passando.

 

Instante

                                                                               
                                                             Leni David

                      Os acordes de um violão  vadio,

                    fragmento perdido de canção

                    fez do silêncio melodia.

                    A paz embriagou a noite

                    o amor prevaleceu maior.

  

Mulheres da Praça

 

                                                      Leni David

O correio na minha rua é distribuído por uma jovem lourinha e simpática. Ela faz o seu trabalho montada numa bicicleta amarela. Todas as manhãs espreito a bicicleta da moça do correio e quando ela chega junto ao portão do edifício, desço as escadas correndo, digo ‘bom-dia’ sorrindo e abro ansiosa a caixinha de cartas, como se fosse o cofre do tesouro. O meu tesouro é feito de envelopes ornados de verde-amarelo!

Subo as escadas correndo, instalo-me numa cadeira e suprimo as barreiras entre o mundo onde estou e o meu mundo, quase do outro lado da terra; o mar sempre foi o grande depósito de segredos da humanidade, mas o Oceano Atlântico se transforma num riachinho, quando tenho uma carta nas mãos. O céu cinza fica azul e a saudade, sol de verão alimentando a vida. As letras miúdas ou grandes contam o cotidiano, as aventuras das crianças, as festas e, talvez por respeito à distância, se transformam em palavras tristes, quando as notícias são más.

As mensagens que chegam contam a vidinha morna do interior do Brasil. As vezes mensagens de carinho, quase um relatório amoroso do cotidiano de lá; outras vezes, de um jeito desconcertado, contam coisas assim : “faz oito meses que não chove no Nordeste e exatamente quatro meses que não cai uma gota de chuva aqui! O gado está morrendo, de sede e fome; ainda agüenta de pé graças ao bagaço da mata. O povo faz pena, não tem sequer água para beber. Ainda esta semana os camponeses de várias municípios se reuniram em frente à prefeitura, na tentativa de conseguir ajuda da municipalidade. O pior é que o prefeito diz que não tem verba, nem do Estado nem do Governo Federal… Dói na alma e faz mal à qualquer vivente, filho de Deus, olhar nos olhos daqueles homens e escutar as cantigas que as mulheres retirantes cantam na rua. Falo de cantiga porque meu vocabulário é pobre, pois de tanta tristeza, elas parecem lamentos.”

De tão longe (nem sei quantas léguas) sinto o coração apertando, um nó na garganta e uma vontade incontrolável de chorar. Penso na gente pobre nordestina, fruto da seca e da miséria. Falam em açudes, em irrigação e até em provação, argumento fácil, pretexto para depositar nas mãos de Deus a incapacidade dos homens! Pobre Deus, válvula de escape dos ignorantes e bode expiatório dos irresponsáveis, tantas vezes invocado para encobrir as incapacidades, tantas vezes responsabilizado pela miséria do povo!

Daqui imagino minha terra querida, « mãe gentil », cheia de contrastes, cores e vejo-a também madrasta desnaturada, patroa insaciável, comandada pela tirania dos poderosos. Vejo você mulher do sertão, desidratada, envelhecida pela labuta e pela desesperança e admiro você! Acredito em vocês, Marias, Joanas, Crispinas e Doralices. Confio em vocês que sobrevivem apesar das privações e que sabem cantar cantigas que doem na alma…. Admiro a força, das Ritas, Clarices, e Balbina, fruto do nada, ou fruto da desesperança, do desespero! Invejo vocês todas, capazes de abrir a boca no meio da praça e cantar… cantar o sofrimento e a falta de pão, cantar corajosamente, quando talvez o desejo maior seja de matar.

Eu acho que esse canto, talvez choro sufocado, seja a semente nova, plantada num espaço também novo, de pedra e asfalto. As lágrimas derramadas nos caminho, na solidão da roça foram sugadas pela terra seca e desapareceram no vazio da indiferença; agora o canto do asfalto está se misturando com o barulho dos motores dos carros, com o suor dos operários na rua, com a tristeza da dona de casa exausta; o canto do asfalto vai fazer barulho, vai incomodar a sesta do patrão.

Canta Inês, canta Clotilde, canta Madalena! Cantem com toda a força e cantem mais alto ainda! Quem sabe se numa dessas tardes de estio, esse canto do asfalto se transforma em hino! Canta mulher, canta mais, mesmo lamentos de doer na alma!

Paris, junho de 1993. (Publicada no jornal CAT, editado pelo MOC)

Observação: eu achava que essa crônica havia sido escrita há pouco tempo, mas quando vejo a data, me dou conta de que já se passaram quase vinte  anos. E quantas coisas mudaram! O correio não traz mais cartas, somente contas. Os envelopes ornados de verde e amarelo desapareceram e a internet tornou-se o meio de comunicação mais utilizado no mundo. As mulheres que cantavam cantigas tristes, não cantam mais… e os movimentos sociais mudaram as estratégias.

O Nordeste? Continua seco e pobre!

Eu? Desencantada…