Irma Rosa – Pura Poesia

 

Numa manhã de maio de 2006 depois de ministrar três horas de aula entrei na sala dos professores para tomar um cafezinho e descansar alguns instantes. Sentados à mesa estavam Roberval Pereyr e Irma Caribé, ele colega da faculdade, ela pessoa muito amiga da família. Ao sentar-me fui surpreendida pela proposta de Roberval:

– Leni, Irma vai lançar um novo livro de poemas; você poderia fazer a apresentação…

Fiquei encabulada, pois não me sentia preparada para escrever a apresentação de um livro. Argumentei e até sugeri nomes de outras pessoas que poderiam cumprir a tarefa com propriedade. Não adiantou. Levei uma cópia do livro para casa e à noite, após a leitura de alguns poemas, escrevi a apresentação motivada apenas pelo conteúdo do que li, impregnada que fiquei daquela poesia viva, dura e terna ao mesmo tempo:

Apresentação

Como falar de poesia sem pedir conselho a um mestre? Em A rosa do povo Drummond advertia sabiamente: não se deve adular o poema; deve-se chegar bem perto, contemplar as palavras, consciente de que cada uma delas tem mil faces secretas sob a face neutra.

Mas onde encontrar a chave que nos conduz ao universo das formas poéticas? O segredo desvendou-se à luz de Noite Clara,de Irmã Caribe Amorim e conduziu-me por caminhos impregnados de fragmentos de vida, flagrantes de sonhos, dores…

Irma é Poeta, artista da palavra. Sua poesia, nua, explode permeada de nuanças,

revela-se em versos fortes:

E no silêncio injusto da aldeia, ruíram todos os erros. Todos.

Ou em versos ternos, plenos de lirismo, como em Crepúsculo:

O vento esfriava meu rosto. / Nada se ouvia além do mar / batendo contra si mesmo.

Ou simplesmente em versos breves como um gesto:

No inverno do ocaso / me pressinto.

Sua escrita tem força, flui como fonte cristalina, mas também machuca, devagar,como pedregulhos na areia. Vale a pena penetrar em Noite Clara para percorrer veredas enluaradas ou floridas; sótãos abandonados ou recantos perdidos, de mãos dadas com a poesia, sem compromisso com as convenções.

                                                                    (Leni David)

Para que possamos voar, esparramar beleza e ternura por aí, em Noites Claras, ou em dias ensolarados.

RICTUS II

Nada mudaria.

queria apenas viver

o outro lado da lua

e as coisas simples

do dia-a-dia

        (Noites Claras, p.15)

 POEMA TÁCITO

Chorei as dores do pássaro errante.

Ferida tombei.

Entre medo e heresias

brinquei com deuses.

e me afoguei no aconchego

De noites frias.

                    (Noites Claras, p. 18) 

ALEGORIA

 Viajavam os ventos

                     ao infinito

Somente um barco

        vagava

na tarde fria

de saudades rendilhadas

o sol em lágrimas últimas

beijou da noite

a face enluarada,

               (Noite Clara, p.25)

RUPTURA

…e rasgando a ventania

(leveza e fúria)

nada mais é preciso mulher

que arriar as velas

ocupar a gávea

soltar os cabelos

suspirar profundo

olhar ao longe

nada dizer…

permitir apenas

que seus olhos digam…

            (Um solto no outro, p. 70)

 

Irma Rosa de Lima Caribé Amorim – Nasceu em Feira de Santana, cidade onde vive. Odontóloga e educadora, Irma dirigiu o Centro de Cultura Amélio Amorim e atualmente é vice-presidente da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana e membro da Academia de Cultura da Bahia. Publicou Um solto no outro (2003), em parceria com os poetas Cardan Dantas e Paulo Pedro Pepeu. Em 2005 publicou Noite Clara e em 2006, Avenida Senhor dos Passos. Tem poemas publicados nas revistas Hera e Arquitextos. Irma Rosa vive o dia-a-dia da cultura baiana.

Problema de troco

 

                              Leni David

Seo João era conhecido como “mão de onça” na cidade em que vivia. Era um senhor alto, pele clara, olhos acinzentados, cabelos cortados curtos, voz de trovão. Não sei se tinha esse apelido porque tinha as mãos grandes, ou se tinha algo a ver com sovinice. Só sei que ninguém ousava chamá-lo assim. E apesar da sua fama de briguento, Seo João era muito querido.

Havia um café na praça principal, onde os fazendeiros da região se reuniam para conversar e negociar, sobretudo pela manhã. Em frente ao café havia uma banca de jornais e Seo João pegava o seu exemplar, todos os dias, antes de ir para casa almoçar. Dobrava-o ao meio, enfiava debaixo do braço, ajeitava o chapéu no alto da cabeça e entrava na sua Rural Willys.

A mania de substituir o troco por bombons começou a ser disseminada, mesmo nas pequenas cidades do interior e o dono da banca de jornais adotou-a. No primeiro dia em que Seo João recebeu aquele troco inusitado, perguntou quanto valia aquilo e o vendedor informou que era equivalente a vinte centavos (de cruzeiro) o que, finalmente, não valia muita coisa.

O tempo passava, Seo João comprava o jornal e colocava as balinhas que recebia como troco no bolso do paletó. Em casa depositava-as num recipiente sobre a escrivaninha e avisava aos familiares que não tocassem nos bombons, pois precisaria deles.

Um dia ele chegou à banca de jornais e perguntou:

– Quanto é o jornal, Seo Pelé?

E o vendedor, apesar de surpreso, respondeu solícito:

– Dois cruzeiros e oitenta centavos, Seo João!

Ele enfiou a mão no bolso, retirou um punhado de balas, que depositou sobre as revistas, e pediu ao vendedor:

– Confira aí, Seo Pelé; veja se o valor está correto.

O  vendedor arregalou os olhos, espantado, e, sem entender o que se passava, questionou:

– Mas o que é isso, Seo João, pra que eu quero esses bombons?

– Ora, Seo Pelé, durante todo esse tempo o senhor me deu essas balinhas como troco. Já que elas valem dinheiro, guardei-as para pagar o jornal. Algum problema?

Seo Pelé coçou a cabeça, em silêncio, e recebeu os bombons.

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Agora respondam: Seu João era sovina, ou sabia valorizar o seu dinheiro?

 

 

Um poema de Luís Pimentel

Partilha

“Se havia acordo, não me recordo…/

Havia choro atrás da porta,”

Ivan Junqueira

 

Quem haverá de ficar

com o que ficou do homem,

nesta noite incerta, insone,

entre farpas, labaredas?

Quem ficará com o pássaro,

o cão, o gato, as feridas?

Ninguém, pois há custo, em vida,

demanda tempo e cansaço.

Será mais fácil encontrar

quem aceite, de bom grado,

a casa, o carro, o arado,

a mão, o braço, o antebraço.

Sua vara de pescar

não tem qualquer serventia.

Só o peixe, na bacia,

limpo, servil, temperado,

tudo o que venha pescado,

que não cobre sacrifícios.

Não se aceita o ofício;

só o que ele propicia.

Que acordo será possível,

no dia da crua partilha?

Sete botões de braguilha,

sete palmos, sete mares?

Para chorar os azares

estarão todos unidos:

o que não foi repartido,

não soma, é pó, inexiste.

Que o homem não fique triste,

na alma, nenhum remorso.

O peito, vísceras, seus ossos

estarão bem repartidos.

                        (Luís Pimentel)