Para começar a festa

 

Um Homem e seu Carnaval

Deus me abandonou

no meio da orgia

entre uma baiana e uma egípcia.

Estou perdido,

Sem olhos, sem boca

sem dimensões.

As fitas, as cores, os barulhos

passam por mim de raspão.

Pobre poesia.

O pandeiro bate

é dentro do peito

mas ninguém percebe.

Estou lívido, gago.

Eternas namoradas

riem para mim

demonstrando os corpos,

os dentes.

Impossível perdoá-las,

sequer esquecê-las.

Deus me abandonou

no meio do rio.

Estou me afogando

peixes sulfúreos

ondas de éter

curvas curvas curvas

bandeiras de préstitos

pneus silenciosos

grandes abraços largos espaços

eternamente.

Poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) publicado no seu primeiro livro, Brejo das Almas.

carnaval1

 

Perder: a dor é sempre a mesma

 

Fiquei silenciosa durante todo o período da Copa do Mundo. Não senti entusiasmo. Dos jogadores que faziam parte do grupo escolhido por Felipão, quase todos eram ilustres desconhecidos para mim, com exceção dos mais famosos: Neymar, David Luís, Maicon, Oscar e Júlio Cesar. Mesmo assim vi todos os jogos, torci, senti o coração disparar num misto de alegria e decepção.

Sempre apaixonada pela Seleção Brasileira, guardo muitas recordações das copas; umas tristes, outras muito boas. O resultado que mais me entristeceu, até a semana passada, foi o da copa de 1998, mas depois da goleada da Alemanha (7 x 1) e dos 3 a zero da Holanda, além do (bom) desempenho das diversas equipes em campo, a dor passou.

Hoje encontrei uma crônica de Drummond escrita em 1982, quando o Brasil perdeu para a Itália e cheguei à conclusão de que o texto escrito há 32 anos, continua atualíssimo, como se tivesse sido escrito em 2014. O tempo passa, os personagens e o cenário mudam, mas o comportamento das pessoas é o mesmo em todos os campeonatos.

Perder, ganhar, viver

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…

Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuante. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.

Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.

Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.

E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?

 

Carlos Drummond de Andrade, Jornal do Brasil, 21 de junho de 1982.

 

O homem e seu carnaval

 

Carlos Drummond de Antrade

 

Deus me abandonou

 no meio da orgia

 entre uma baiana e uma egípcia.

 Estou perdido.

 Sem olhos, sem boca

 sem dimensões.

 As fitas, as cores, os barulhos

 passam por mim de raspão.

 Pobre poesia.       

 

O pandeiro bate

 é dentro do peito

 mas ninguém percebe.

 Estou lívido, gago.

 Eternas namoradas

 riem para mim

 demonstrando os corpos,

 os dentes.

 Impossível perdoá-las,

 sequer esquecê-las.

 

Deus me abandonou

 no meio do rio.

 Estou me afogando

 peixes sulfúreos

 ondas de éter

 curvas curvas curvas

 bandeiras de préstitos

 pneus silenciosos

 grandes abraços largos espaços

 eternamente.

O amor antigo vive de si mesmo

 

O Amor Antigo

 O amor antigo vive de si mesmo,

não de cultivo alheio ou de presença.

Nada exige, nem pede. Nada espera,

mas do destino vão nega a sentença.

 

O amor antigo tem raízes fundas,

feitas de sofrimento e de beleza.

Por aquelas mergulha no infinito,

e por estas suplanta a natureza.

 

Se em toda parte o tempo desmorona

aquilo que foi grande e deslumbrante,

o antigo amor, porém, nunca fenece

e a cada dia surge mais amante.

 

Mais ardente, mas pobre de esperança.

Mais triste? Não. Ele venceu a dor,

e resplandece no seu canto obscuro,

tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

 

A dor é inevitável, o sofrimento é opcional

Definitivo

 

Carlos Drummond de Andrade

 

Definitivo, como tudo o que é simples.

Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos, por todos os beijos cancelados pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um

verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!

“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.”

A dor é inevitável, o sofrimento é opcional…