Poemas de Damário Dacruz

 

Todo risco

A possibilidade de arriscar
É que nos faz homens
Vôo perfeito
no espaço que criamos
Ninguém decide
sobre os passos que evitamos
Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos
Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.

Anzol

Angustiado olhar
do peixe capturado.
Angustiado olhar
do peixe
na mesa do mercado.
O amor, às vezes,
tem esse olhar
de quem vacila prisioneiro
quando tudo é mar.

Caixa – preta 

Sou um homem.
Portanto,
mais que palavra.

Não pronuncio
o sentimento
apenas como palavra.

O que foi dito
ao entardecer
não se confirma
na madrugada.
O que foi visto
no sonho
não se confronta
com a realidade.

Sou um homem.
Portanto,
uma surpresa.

 
In Segredo das Pipas, Salvador: EPP/ BANCO CAPITAL, 2003.

 
 
Biografía de Damário Dacruz por Miguel Carneiro

 

“Sua criação inclui versos duros que atingem o alvo de toda essa desordem instaurada no país pela gangue palaciana. Para essa gente, poetas só são ‘os zezés de camargos e lucianos cantando dor de corno’, ou ‘os gilbertos gils da mediocridade’, que lambem os sujos sacos e aceitam suas malas de dinheiro como forma de patrocínio:

“Quanto mais eu sonho
com Cachoeira
mais amanheço em Nove York”

Quem o diz é Damário.

Poetas vivos brasileiros não passam de cerca de oito mil num universo em que a totalidade da população brasileira atinge a casa dos cento e oitenta milhões de habitantes. Mas aqueles que com o seu sacrifício adquirem o pão nosso de cada dia com a sua poesia não chegam a quatro ou cinco.

No entanto, contrariando esses dados de uma sociedade perversa e neoliberal, está estabelecido na estrada desse campo literário o poeta cachoeirano Damário da Cruz, que há trinta anos faz poesia de primeira plana, alheio à safadeza capitalista. Conheci-o em décadas passadas, quando com Daniel Cruz Filho e meu amigo Márcio Salgado, poeta também lá de Monte Santo, autor de Indizível, lançaram uma coletânea na Facom, ainda no bairro do Canela, dali o poeta Dámario saiu diplomado. Da Cruz já viu o mundo. Fotógrafo premiado, percorreu vários países captando na lente de seu olhar paisagens e gentes. No Pouso da Palavra, em sua terra natal, mantém um espaço cultural, abrigando conterrâneos e turistas, ávidos por cultura genuína, brasileira. O poeta faz parte da irmandade dos membros do grande templo da linda sacerdotisa Fon, a nossa saudosa e eterna Luiza Gaiaku. E evocar a cidade heróica sem ligá-la a Damário da Cruz, que tanto canta sua aldeia, é cair no lugar comum.

Damário é um poeta paradoxal, dentro da síntese de seus versos, indicadores de brilhos e imantação cuja poesia sintética eclode lírica em meu coração. “

Canção das mulheres

 

                                                         Lya Luft

Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dóia idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco – em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo ”Olha que estou tendo muita paciência com você!”

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa – uma mulher.

 

Lya Fett Luft nasceu em Santa Cruz do Sul no dia 15 de setembro de 1938. Exerceu o magistério superior, como professora de Linguística. Sua atividade literária inclui a tradução, principalmente de autores de língua inglesa e alemã, dentre os quais Brecht, Virginia Woolf, Herman Hesse, Thomas Mann e Günther Grass. iniciou sua carreira literária escrevendo poemas e crônicas para o jornal Correio do Povo. Publicou livros de poemas, romances e novelas, tendo textos seus adaptados para o teatro. Sua primeira obra de ficção foi As parceiras, em 1980, seguindo-se A asa esquerda do anjo, Reunião de família, O quarto fechado, Exílio e A sentinela. O Rio do Meio obteve o prêmio de melhor obra de 1996, da Associação de Críticos de Arte de São Paulo.

 

A Rainha da Primavera

 

Leni David

Ela tinha uns oito anos e se chamava Iara. Era gorducha e usava óculos de lentes espessas como fundos de garrafa; os óculos eram amarrados a um pedaço de elástico que contornava a cabeça e mesmo assim ela os quebrava com muito frequência. Seu rosto rosado e rechonchudo, emoldurado por cabelos louros e encaracolados, lembrava aqueles anjos barrocos pintados nos tetos das velhas igrejas da Bahia. A rua onde morava era tranquila e cheia de crianças. Iara brincava com a meninada da vizinhança e muitas vezes as brincadeiras terminavam em tapas e choros, pois não aceitava que a chamassem de feia.

Iara tinha seis irmãs e três irmãos. Viviam todos numa casa antiga e espaçosa onde havia um quintal e onde sobravam estripulias de crianças. As histórias contadas depois do jantar pelos mais velhos falavam de almas penadas, de botijas enterradas cheias de dinheiro, no tempo de Lampião; histórias de lobisomens, de mulas sem-cabeça e de uma mãe d’água que morava na Gurunga, uma cachoeirinha muito bonita que ficava perto dali. Histórias povoadas por princesas sofredoras e madrastas perversas, contadas em tom solene e misterioso, na cozinha, ao pé do fogão antigo.

O padrinho de Iara, seu tio Jonas, era irmão do seu pai. Ele era solteirão, gorducho, tinha um defeito em uma das pernas que o fazia mancar um pouco, e sua voz era fanhosa. Tio Jonas não tinha filhos e paparicava muito a sua sobrinha-afilhada. Ele era viajado. Conhecia toda a América Latina, visitava sempre o Rio de Janeiro, e se hospedava no Hotel Quitandinha, numa época em que para se chegar até lá era preciso embarcar num navio e viajar durante uma semana, ou mais.

Tio Jonas não fazia contas quando se tratava de oferecer presentes, ou satisfazer os caprichos da menina. Quando ele vinha à cidade para visitar a família, usava um terno branco de diagonal e um chapéu de baeta, arranjado na cabeça com elegância. Tinha no dedo anular da mão direita um anel de ouro muito largo onde se viam gravadas, em relevo, as iniciais do seu nome. Para prender a gravata ele usava um alfinete de ouro adornado por um diamante que lançava faíscas cintilantes.

Sua presença era sempre notada, pois exalava um cheiro bom de perfume caro. Sorridente, chegava à cidade com muitas malas, às vezes tão numerosas que eram necessários dois carregadores para transportá-las. Repletas de pacotes de presentes. Os mais apreciados eram as guloseimas: maçãs argentinas, vermelhas e cheirosas, produto luxuoso para aqueles tempos; bombons enrolados em papéis coloridos, chocolates acondicionados em caixas que pareciam de ouro e prata. Naquela época só havia uma sorveteria na cidade e quase ninguém possuía uma geladeira. Mas o padrinho de Iara comprava tigelas enormes de sorvetes, quilos de sorvetes, de vários sabores e cores, uma orgia de regalos gelados e açucarados para a meninada e para os grandes também.

Iara frequentava uma escola próxima à sua casa. Num fim de tarde ela chegou em casa trazendo uma grande notícia; haveria uma festa no mês de setembro, quando seria escolhida a rainha da primavera entre as meninas mais bonitas da turma; a festa tinha como objetivo arrecadar fundos para melhorar as instalações do prédio escolar que estava degradado. Para eleger a rainha todas as crianças receberiam cartõezinhos que valeriam votos; assim, a candidata que vendesse mais votos seria coroada.

Iara decidiu que ia candidatar-se a rainha da primavera, mas a professora foi contra a sua candidatura:

– Você não pode! Você é loura, mas não é bonita!!!

Mas ninguém conseguiu dissuadi-la. Também em casa, toda a família tentou demovê-la da idéia; sem sucesso. Porém, ela foi apoiada plenamente pelo avô e pelo padrinho, que se encantaram com a novidade.

No dia seguinte ela comunicou à professora que seria candidata e esta, mesmo a contragosto, foi obrigada a aceitar a candidatura da menina e a entregar-lhe cem cartõezinhos para serem vendidos e transformados em votos. Muito compenetrada e confiante, Iara conseguiu vender votos aos familiares e vizinhos; vendeu todos os cartões. E mais uma vez chegou em casa com uma nova remessa de cartões, que foi comprada pelo avô e pelo tio Jonas. Daí em diante, todos os cartões que lhe eram confiados eram vendidos sem demora, perfazendo uma soma considerável de votos e de dinheiro.

No dia da apuração o padrinho acompanhou a afilhada. Desde o início da contagem dos votos, Iara vencia com larga vantagem, quando o pai de uma das candidatas ofereceu mais dinheiro para eleger a filha. O tio Jonas, então, proclamou diante dos presentes, com sua voz forte e fanhosa:

– Se vocês cobrirem a soma que ela arrecadou, estão perdendo tempo! Quantos vocês querem? Dois mil? Três mil?

O silêncio caiu sobre a sala. Todos se entreolharam em silêncio, quando a professora proclamou Iara a nova Rainha da Primavera da escola, com uma larga margem de votos a seu favor.

Alguns dias antes da festa o padrinho viajou para a capital visando os preparativos para a coroação. Na sua volta deixou toda a família estupefata com os objetos e ornamentos que adquirira para abrilhantar a festa da afilhada. Trouxe cetro prateado e coroa de pérolas; um manto de veludo azul marinho bordado de lantejoulas. Sapatos de verniz e um magnífico vestido de tafetá cor-de-rosa, de mangas bufantes, estampado de bolinhas da mesma cor do manto. Uma beleza! Ah, trouxe também  novos óculos, com armação prateada, que deixou a menina encantada.

No dia da festa o padrinho requisitou toda a família e amigos para organizar o desfile. “Sua Majestade” deveria chegar à escola em grande pompa. Toda a rua teve o privilégio de assistir ao cortejo singular: duas meninas vestidas de branco abriam o préstito projetando pétalas de rosas sobre o caminho por onde passaria a Rainha da Primavera; em seguida, uma outra menina vestida como princesa deslocava-se lentamente levando nas mãos uma almofada de veludo azul-marinho, onde estava acomodada a coroa de pérolas. A futura soberana, sorridente e feliz, caminhava devagar levando nas mãos o cetro prateado. Seis garotas da vizinhança também faziam parte do cortejo segurando as bordas do longo manto real.

Houve comes e bebes, danças e muitas brincadeiras durante a festa da coroação. Quando tudo acabou Iara voltou para casa com os pés descalços, os sapatos novos nas mãos e com a cabeça adornada pela coroa de pérolas. Ela estava cansada e feliz, as faces coradas e o rosto sorridente, iluminado. Algumas meninas portavam as outras peças da indumentária da Rainha, por puro prazer. A partir daquele dia, até que a coroa se desfizesse em pedaços e o manto se tornasse um trapo desbotado, muitas crianças foram coroadas reis e rainhas nas brincadeiras da criançada da rua. E nunca mais a chamaram de feia!