Aguardo o lançamento com impaciência.
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Espinhoso e delicado ofício de escrever
Luís Pimentel
Brindando o acontecimento recente de mais uma Flip, a festa literária que anualmente transforma a nossa linda Paraty em capital mundial da cultura, ofereço esta crônica a todos aqueles que têm o hábito de escrever. Seja por obrigação (jornalistas), devoção (escritores) ou curtição (amadores e diletantes).
Pincei e ofereço graciosamente três dicas primorosas, de três mestres da palavra (em prosa e em verso): o patrício e mestre absoluto Graciliano Ramos, o mexicano Juan Rulfo e o nosso poeta João Cabral de Melo Neto.
Vamos primeiro ao bom e velho Graça, que disse assim:
“Quem escreve deve ter cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar com ouro falso, a palavra foi feita para dizer.”
E a dica de Rulfo, o autor do fundamental romance “Pedro Páramo” e do volume de contos “Chão em chamas”, ambos traduzidos divinamente por Eric Nepomuceno:
“No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A partir daí, o ritmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o voo. Quando você achar que chegou aonde queria chegar, é que começa o verdadeiro trabalho: cortar, cortar muito.”
É só isso. Parece fácil, não é?
E vamos à receita deliciosa de João Cabral, para fechar a crônica e abrir o dia com poesia:
“Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.”
Então, é isso. Fica combinado que o leve, o oco, a palha e o eco não servem para nada mesmo; nem na panela nem no papel.
Rio, Central do Brasil
Luís Pimentel
Caras e culpas,
passos e abraços.
Sorrisos sem dentes
na boca da noite.
Vadios desencontros
e encontros vazios.
Na fria calçada,
calor de arrepio
e vida atrasada.
Leve suspiro.
Sapato apertado.
Um que é sem paradeiro.
Há quem conte mentiras,
enganando o silêncio.
Os que acordam cedo
vão bater continência
ante o busto do herói.
Têm as abstinências.
Vejo beijos e assaltos
sob o imenso relógio
Insigne
de um tempo tardio.
O sol sem remédio
morre lá na Gamboa.
Logo mais vem a lua
enxaguar a Baía,
sobre as luzes da Igreja.
As cotias do Campo.
A fumaça da Brahma.
O repique do Elite.
Os que bebem o sereno
não padecem de azia.
Entre o pão e o castigo,
entre o medo e a euforia,
ainda resta o elogio:
o Rio
é a Central
do Brasil.
Feliz Ano Novo
Luís Pimentel
A turma de seis, que se encontrava com muita frequência, se reuniu para uma confraternização de Ano Novo no bar de sempre, nas imediações da faculdade. O ano era 1964, estavam todos muito jovens, cheios de disposição, saúde e projetos.
Eram cinco rapazes e a Sylvinha, a linda Sylvinha, que participava com os amigos de todos os assuntos – inclusive futebol e mulher – e bebia igual a todos eles, adorava todos eles, não dava para nenhum. A turma, em peso, também adorava a Sylvinha, mas detestava sua determinação nesse último quesito.
O sexteto entornou todas, comeu mais ainda, e prometeu repetir a dose dali a 50 anos se estivessem vivos (claro que estariam! Ninguém pensa que pode morrer um dia quando se está em torno dos dezenove anos). Cada um falou muito de seus projetos futuros, quem ia exercer a profissão no interior, quem faria doutorado na Europa ou nos Estados Unidos, quem seria o primeiro a ficar rico e, especialmente, quem seria o primeiro a pegar a Sylvinha.
Os planos dela eram os mais singelos:
– Quero apenas casar e ter filhos. Mas não será com nenhum de vocês.
Três meses depois daquele encontro, no dia 31 de março, o golpe militar desaguou na ditadura cuja história é hoje conhecida de jovens e de velhos, desencadeou ações, reações e dilacerações de todos os planos e projetos. Os amigos, divididos entre a porra-louquice, casamento, luta-armada, exílio, etc, se perderam.
Mas se acharam em 2014, depois de pesquisas nas redes oficiais, e voltaram ao velho pé-sujo – agora um boteco de grife metido a besta, mas funcionando no mesmo endereço. Foram se chegando, um a um (até porque alguns já caminhavam com certa dificuldade), até darem conta de que só faltava a Sylvinha. Abriram os trabalhos e as garrafas com a seção-confissões: três entraram e saíram do PT, dois não podiam mais beber, todos haviam casado e se separado, um ficara rico, nenhum pegara a Sylvinha.
Que, aliás, chegou nesse exato momento, mais bonita do que nunca, agora de óculos grossos e cabelos brancos:
– Feliz Ano Novo, meninos!
Bonito ver aqueles quase setentões, todos comovidos e derretidos diante do tempo, da amizade e da beleza.
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O carioca de Feira de Santana
Luís Pimentel
Toda vez que ouço Jackson do Pandeiro cantando sua parceria com Elias Soares Filomena, dê um jeito em Fedegoso, tá fanhoso parecendo uma taboca/Passou dois meses lá no Rio e veio embora, agora tá falando carioca”, me lembro de Belarmino.
Nosso herói (herói é assim, cada um pode eleger o seu) morava no bairro da Kalilândia, em Feira de Santana, e um dia decidiu que estava na hora de tentar sorte no Rio de Janeiro. Um amigo disse que tinha um primo em Vaz Lobo e um concunhado na Rocinha, poderia fazer uma ponte para garantir o teto. Belarmino não fez por menos:
– Ou o Leblon ou nada!
Gostava de um hit do Luis Reis, na voz de Miltinho, garantindo que “quem é bom de samba lá no Leblon, senta na mesa e puxa o tom, e o samba sai no guardanapo…” É que Belarmino tinha projetos de virar compositor, guardava suas ideias para desenvolver quando tivesse clima. E em termos de clima propício o Rio dava show, especialmente com aqueles bares repletos de “intelectuais, poetas consagrados e escritores geniais”, como nos versos da canção.
Por isso, depois das vinte e oito horas e quase mil e quinhentos quilômetros no lombo da Viação São Geraldo, Belarmino se instalou no apartamentinho que alugava quartos a rapazes solteiros nas imediações da Bartolomeu Mitre. Dali era um pulo até o Bracarense, o Jobi, o Diagonal, a Pizzaria Guanabara, pontos sempre lotados de artistas, a praia, a boemia, mulheres capazes de inspirar qualquer criador.
Belarmino bateu muita perna pelas ruas do bairro, mostrou composições suas a uns e a outros, sem conseguir empolgar ninguém, até a esperança e o dinheiro economizados para a aventura acabarem e ele fazer o caminho de volta. O Rio e o Leblon renderam pouco em termos de experiência de vida, mas o nosso herói tinha facilidade para pegar sotaque alheio. De volta a Feira de Santana, Belarmino ficou logo marcado por um jeitão dolente de fazer desfilar os verbos e um grunhido chiado de pronunciar certas sílabas parecendo uma taboca. Ganhou logo o apelido pouco original de Carioca e viveu o resto dos seus dias nos bares da Kalilândia, Queimadinha e Getúlio Vargas.
Entre uma cerveja (que ele pronunciava Ceeeerrrva) e outra, contava histórias vividas por ele no que chamava de “metro quadrado mais musical do planeta” (o maix era assim, meio axizelado), o Leblon para quem é bom. A galera ia ao delírio quando ele pronunciava expressões como “mermão”, “meeexmo”, “Mengô”, “Futibó”, “feixoada”, “Poxto Seix”, ethicetera.
– As historinhas – diziam – ninguém aguenta mais escutar. Mas o carioquês do Belarmino é impagável…
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