Tropeços – A graça e a lógica de certos enganos da fala

 

O compenetrado pintor de paredes olhou as grandes manchas que se expandiam por todo o teto do banheiro do nosso apartamento, as mais antigas já negras, umas amarronzadas, outras esverdeadas, pediu uma escada, subiu, desceu, subiu, apalpou em vários pontos e deu seu diagnóstico:

– Não adianta pintar. Aqui tem muita “humildade”.

Levei segundos para compreender que ele queria dizer “umidade”. E consegui não rir. Durante a conversa, a expressão surgiu outras vezes, não escapara em falha momentânea.

Há palavras que são armadilhas para os ouvidos, mesmo de pessoas menos humildes. São captadas de uma forma, instalam-se no cérebro com seu aparato de sons e sentidos – sons parecidos e sentidos inadequados – e saltam frescas e absurdas no meio de uma conversa. são enganos do ouvido, mais do que da fala. Como o tropeção de uma pessoa de boas pernas não é um erro do caminhar, mas do ver.

Resultam muitas vezes formas hilárias. O zelador do nosso prédio deu esta explicação por não estar o elevador automático parando em determinados andares:

– O computador entrou em “pânico”.

Não sei se ele conhece a palavra “pane”. Deve ter sido daquela forma que a ouviu e gravou. Sabemos que é “pane”, ele assimilou “pânico” – a coisa que nomeamos é a mesma, a comunicação foi feita. Tropeço também é linguagem.

O cheque bancário é frequentemente vítima de um tropicão desses. Muita gente diz, no final de uma história de esperteza ou de desacordo comercial, que mandou “assustar” um cheque. Pois outro dia encontrei alguém que mandou “desbroquear” o cheque. Linguagens… Imagino a viagem que a palavra “desbroquear” fez na cabeça da pessoa: a troca comum do “l” pelo “r”, a estranheza que se seguiu, o acréscimo de um “n” e aí, sim, a coisa ficou parecida com alguma coisa, bronca, desbronquear, sem bronca. Muitas palavras com status de dicionário nasceu assim.

Já ouvi de um mecânico que o motor do carro estava “rastreando”, em vez de “rateando”. Talvez a palavra correta lhe lembrasse rato e a descartara como improvável. “Rastrear” parecia melhor raiz, traz aquela ideia de vai e volta e vacila e vacila, como quem segue um rastro… Sabe-se lá. Há algum tempo, quando eu procurava um lugar pequeno para morar, o zelador mostrou-me um quarto-e-sala “conjugal”. Tem lógica, não? Muitos erros são elaborações. Não teriam graça se não tivesse lógica.

A personagem Magda, da televisão, nasceu deles. Muito antes, nos anos 70, um grupo de jornalistas, escritores e atores criou o Pônzio, personagem de mesa de bar que misturava os sentidos das palavras pela semelhança dos sons. Há celebridades da televisão que fazem isso a sério. Na casa dos Artistas, uma famosa queria pôr um “cálcio” no pé da mesa. Uma estrela da Rede TV! falou em “instintores” de incêndio. A mesma disse que certo xampu tinha”Ph.D. neutro.

Estudantes e candidatos à universidade também tropeçam nos ouvidos. E não apenas falam, mas registram seus equívocos. Nas provas de avaliação do ensino médio aparecem coisas como ” a gravidez do problema”, “micro-leão-dourado” e, este é ótima, “raios ultraviolentos”.

Crianças cometem coisas  tais, para a delícia dos pais. O processo é o mesmo: ouvir, re-elaborar, inserir lógica própria e falar. Minha filha pequena dizia “água solitária”, em vez de “sanitária”. A sobrinha de uma amiga, que estranhava a irritação mensal da tia habitualmente encantadora, ouviu desta uma explicação que era quase uma desculpa e depois a repassou para a irmã menorzinha: – A tia Pat está “misturada”.

(ANGELO, Ivan. Tropeços; a graça e a lógica de certos enganos. Veja, São Paulo, 23 abr. 2003)

 

As novenas da Igreja dos Remédios

 As cantoras do coro

 Leni David

Eu devia ter uns doze anos quando comecei a participar do coro da igreja dos Remédios, junto com outras meninas, vizinhas da mesma rua. Ajudávamos a cantar as trezenas de Santo Antônio, que aconteciam de primeiro a treze de junho, e as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no mês de outubro. Participar do coro da Igreja era um privilégio, segundo as cantoras oficiais, que recebiam, inclusive, um pagamento simbólico concedido pelo Padre Aderbal. As cantoras, elas nos permitiam subir até o coro para responder a ladainha que era entoada durante as celebrações, mas não podíamos conversar, sorrir, ou tocar em qualquer objeto que estivesse exposto. Não nos importávamos com isso. O importante era responder o ora pronobis na hora certa e com a voz bem afinada.

Dona Yolanda, esposa de um médico conceituado da cidade, cantava, mas a sua principal função era tocar o órgão. Como eu achava bonito aquele som! Dona Meranta e Dona Pombina as catequistas – elas ensinaram o catecismo à maioria das meninas da cidade daquela época, mas nas novenas elas se transformavam em cantoras. Dona Tita morava na nossa rua, era viúva e tinha uma voz forte e límpida, bonita. Havia outras cantoras, mas não me lembro dos nomes. A chefe, porém, era Dona Catarina, também zeladora da igreja. Ela decidia tudo: os hinos que deveriam ser entoados, se a ladainha seria em latim ou português e a que momento deveríamos entrar na cantoria. Não reclamávamos de nada e ainda ficávamos contentes quando cada uma de nós recebia duas balas de mel, uma no início “para adoçar”.a garganta, e a outra no final, como brinde.

Participávamos do coro há mais de dois anos. Assistíamos às celebrações do alto, sem ninguém à nossa frente e ainda nos divertíamos. Amávamos quando o Padre Aderbal, que era um pouco gordinho, careca e que tinha dois lindos olhos azuis, levanta os olhos e as mãos para os céus. Isso acontecia quando os sinos repicavam e o turíbulo espalhava o aroma do incenso. Ajoelhado, olhos e mãos voltados para o alto, em atitude de adoração, tínhamos a impressão de que ele iria voar. Nos controlávamos e sorríamos baixinho, de modo que ninguém percebia.

Certa vez combinamos de chegar à igreja bem cedo. Chegamos bem antes das sete. Pedimos a chave do coro ao sacristão, que também era o sineiro. Para ensaiar – explicamos. E ele, sem nenhuma atitude hostil atendeu à nossa solicitação. Subiu para tocar a primeira chamada da novena. Subimos a escada que levava ao coro. As pessoas já começavam a chegar à igreja. Ensaiávamos a ladainha quando Dona Yolanda chegou. Iara, que havia ficado como porteira, deixou que ela entrasse e ao vê-la chegar no alto da escada trancou a porta, por dentro. A primeira chamada da novena já havia sido feita, mas faltava a segunda e o sacristão não estava do lado de dentro. Iara não hesitou. Subiu os degraus que levavam à torre, de dois em dois, e tocou o sino como nunca mais ouvi tocar em toda a minha vida, durante uns cinco minutos. Festivo, barulhento, emocionante! Isso foi bom porque, nesse ínterim, as cantoras haviam chegado e batiam na porta do coro, em desesperadas, pois a novena começaria às 19h. Dona Yolanda, também, entrou em desespero:

– Quem trancou a porta? O que vocês fizeram? Abram a porta, já!

Iara que já havia repicado o sino e encoberto o barulho feito pelas cantoras, apareceu com a cara mais inocente do mundo e explicou que havia perdido a chave enquanto tocava a segunda chamada da novena. Dona Yolanda nos olhou com ar severo e resmungou:

– Quem vai cantar?

E nós, em coro, respondemos:

– Nós!

Ela sentou-se resignada diante do órgão e as notas musicais preencheram o templo. Geraldina, filha de Dona Tita e a mais velha do grupo – tinha uns quatorze anos – com o livreto da ladainha nas mãos instalou-se junto ao órgão. Dona Yolanda olhou incrédula e deu os primeiros acordes. A voz de Geraldina ecoou límpida e melodiosa e todos se voltaram para o coro, até o Padre. E o melhor é que ela cantava em latim – e o nosso coro respondia o ora pronobis na maior afinação e felicidade. Até Dona Yolanda se entusiasmou.

Entoamos outros cânticos e no encerramento da celebração eu deveria cantar o hino de Nossa Senhora do Rosário. Até hoje tenho orgulho disso! Como tudo correra bem até ali, Dona Yolanda quis saber quem iria cantar no encerramento e eu me apresentei. Ela ainda ponderou:

– Mas esse hino é muito difícil. Tem certeza que quer cantar esse mesmo?

Eu respondi que sim e ela deu os primeiros acordes. Enchi os pulmões e soltei a voz:

Volvei oh Maria o vosso olhar

Lá do vosso santuário

Atendei nossos rogos nossas preces

Oh Virgem senhora do Rosário…

 

Juro que foi lindo, tão bonito que fiquei emocionada. Quando terminou estava com os olhos marejados de lágrimas. A maior surpresa, no entanto, foi a atitude de Padre Aderbal. Antes de tirar os paramentos, dirigiu-se aos fiéis e pediu uma salva de palmas “para as jovens cantoras do coro, que haviam embelezado com as suas vozes juvenis a festa de Nossa Senhora”. Todos aplaudiram.

Foi aí que nos lembramos da chave. Onde estava a chave da porta do coro? Preocupadas pensávamos em subir até a torre para procurá-la quando Iara, com a cara mais inocente do mundo confessou:

– A chave está aqui. E puxou o elástico da manga bufante do seu vestido rosa. E justificou: se eu entregasse a chave, Dona Yolanda abriria a porta para as cantoras e nós não queríamos que elas entrassem. Elas não nos deixariam cantar.

Descemos a escadaria que conduzia ao térreo, silenciosas. Quando a porta se abriu Dona Catarina decretou: – Hoje não tem bala nenhuma. Acabou! E não voltem aqui nunca mais, ouviram? Vocês estão proibidas de subir ao coro!

Fomos embora, felizes. Fomos crianças felizes. Pena que não virei cantora…

Foto: Leni David

Um poema de Iderval Miranda

Nativismo

Imaginou-se nos cafés de paris 

lançando uma nova poética 

e 

um baião enciumado ecoou longe. 

 

                                                                 Iderval Miranda * 

    (Festa e funeral. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1982. Pág. 31)

* Um dos meus poetas preferidos