As novenas da Igreja dos Remédios

 As cantoras do coro

 Leni David

Eu devia ter uns doze anos quando comecei a participar do coro da igreja dos Remédios, junto com outras meninas, vizinhas da mesma rua. Ajudávamos a cantar as trezenas de Santo Antônio, que aconteciam de primeiro a treze de junho, e as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no mês de outubro. Participar do coro da Igreja era um privilégio, segundo as cantoras oficiais, que recebiam, inclusive, um pagamento simbólico concedido pelo Padre Aderbal. As cantoras, elas nos permitiam subir até o coro para responder a ladainha que era entoada durante as celebrações, mas não podíamos conversar, sorrir, ou tocar em qualquer objeto que estivesse exposto. Não nos importávamos com isso. O importante era responder o ora pronobis na hora certa e com a voz bem afinada.

Dona Yolanda, esposa de um médico conceituado da cidade, cantava, mas a sua principal função era tocar o órgão. Como eu achava bonito aquele som! Dona Meranta e Dona Pombina as catequistas – elas ensinaram o catecismo à maioria das meninas da cidade daquela época, mas nas novenas elas se transformavam em cantoras. Dona Tita morava na nossa rua, era viúva e tinha uma voz forte e límpida, bonita. Havia outras cantoras, mas não me lembro dos nomes. A chefe, porém, era Dona Catarina, também zeladora da igreja. Ela decidia tudo: os hinos que deveriam ser entoados, se a ladainha seria em latim ou português e a que momento deveríamos entrar na cantoria. Não reclamávamos de nada e ainda ficávamos contentes quando cada uma de nós recebia duas balas de mel, uma no início “para adoçar”.a garganta, e a outra no final, como brinde.

Participávamos do coro há mais de dois anos. Assistíamos às celebrações do alto, sem ninguém à nossa frente e ainda nos divertíamos. Amávamos quando o Padre Aderbal, que era um pouco gordinho, careca e que tinha dois lindos olhos azuis, levanta os olhos e as mãos para os céus. Isso acontecia quando os sinos repicavam e o turíbulo espalhava o aroma do incenso. Ajoelhado, olhos e mãos voltados para o alto, em atitude de adoração, tínhamos a impressão de que ele iria voar. Nos controlávamos e sorríamos baixinho, de modo que ninguém percebia.

Certa vez combinamos de chegar à igreja bem cedo. Chegamos bem antes das sete. Pedimos a chave do coro ao sacristão, que também era o sineiro. Para ensaiar – explicamos. E ele, sem nenhuma atitude hostil atendeu à nossa solicitação. Subiu para tocar a primeira chamada da novena. Subimos a escada que levava ao coro. As pessoas já começavam a chegar à igreja. Ensaiávamos a ladainha quando Dona Yolanda chegou. Iara, que havia ficado como porteira, deixou que ela entrasse e ao vê-la chegar no alto da escada trancou a porta, por dentro. A primeira chamada da novena já havia sido feita, mas faltava a segunda e o sacristão não estava do lado de dentro. Iara não hesitou. Subiu os degraus que levavam à torre, de dois em dois, e tocou o sino como nunca mais ouvi tocar em toda a minha vida, durante uns cinco minutos. Festivo, barulhento, emocionante! Isso foi bom porque, nesse ínterim, as cantoras haviam chegado e batiam na porta do coro, em desesperadas, pois a novena começaria às 19h. Dona Yolanda, também, entrou em desespero:

– Quem trancou a porta? O que vocês fizeram? Abram a porta, já!

Iara que já havia repicado o sino e encoberto o barulho feito pelas cantoras, apareceu com a cara mais inocente do mundo e explicou que havia perdido a chave enquanto tocava a segunda chamada da novena. Dona Yolanda nos olhou com ar severo e resmungou:

– Quem vai cantar?

E nós, em coro, respondemos:

– Nós!

Ela sentou-se resignada diante do órgão e as notas musicais preencheram o templo. Geraldina, filha de Dona Tita e a mais velha do grupo – tinha uns quatorze anos – com o livreto da ladainha nas mãos instalou-se junto ao órgão. Dona Yolanda olhou incrédula e deu os primeiros acordes. A voz de Geraldina ecoou límpida e melodiosa e todos se voltaram para o coro, até o Padre. E o melhor é que ela cantava em latim – e o nosso coro respondia o ora pronobis na maior afinação e felicidade. Até Dona Yolanda se entusiasmou.

Entoamos outros cânticos e no encerramento da celebração eu deveria cantar o hino de Nossa Senhora do Rosário. Até hoje tenho orgulho disso! Como tudo correra bem até ali, Dona Yolanda quis saber quem iria cantar no encerramento e eu me apresentei. Ela ainda ponderou:

– Mas esse hino é muito difícil. Tem certeza que quer cantar esse mesmo?

Eu respondi que sim e ela deu os primeiros acordes. Enchi os pulmões e soltei a voz:

Volvei oh Maria o vosso olhar

Lá do vosso santuário

Atendei nossos rogos nossas preces

Oh Virgem senhora do Rosário…

 

Juro que foi lindo, tão bonito que fiquei emocionada. Quando terminou estava com os olhos marejados de lágrimas. A maior surpresa, no entanto, foi a atitude de Padre Aderbal. Antes de tirar os paramentos, dirigiu-se aos fiéis e pediu uma salva de palmas “para as jovens cantoras do coro, que haviam embelezado com as suas vozes juvenis a festa de Nossa Senhora”. Todos aplaudiram.

Foi aí que nos lembramos da chave. Onde estava a chave da porta do coro? Preocupadas pensávamos em subir até a torre para procurá-la quando Iara, com a cara mais inocente do mundo confessou:

– A chave está aqui. E puxou o elástico da manga bufante do seu vestido rosa. E justificou: se eu entregasse a chave, Dona Yolanda abriria a porta para as cantoras e nós não queríamos que elas entrassem. Elas não nos deixariam cantar.

Descemos a escadaria que conduzia ao térreo, silenciosas. Quando a porta se abriu Dona Catarina decretou: – Hoje não tem bala nenhuma. Acabou! E não voltem aqui nunca mais, ouviram? Vocês estão proibidas de subir ao coro!

Fomos embora, felizes. Fomos crianças felizes. Pena que não virei cantora…

Foto: Leni David