Poesia em prosa

 

Carta de Caymmi para Jorge Amado

“Jorge, meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para Yemanjá, pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando vierem, me tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.

Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e acarajés e gente em volta. Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí.

O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?

Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs, todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir ao trono de rainha? Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te encontrando, indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.

Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo, daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.

Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia. Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina, Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te tendo de padrinho. A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.

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Homenagem a Dorival Caymmi

 

Dorival Caymmi, nascido em Salvador em 30 de abril de 1914, completaria hoje, dia 30 de abril, 97 anos de idade. Sua morte aconteceu em 16-08-2008.Caymmi que embarcou para o Rio de Janeiro nos anos 30, onde deveria trabalhar como jornalista e ilustrador, pegou um « Ita » (o navio Itapé) chegando à então capital do Brasil em 1938. Nessa época publicou  alguns desenhos na revista « O Cruzeiro » e apresentou-se na Rádio Transmissora. Seus primeiros sucessos, ao lado de Carmem Miranda, foram as canções A Preta do Acarajé e O Que é que a Baiana Tem…

Mas Caymmi consagrou-se no cenário musical nacional cantando canções sobre a Bahia, seus bairros, a vida simples do povo, principalmente dos pescadores. Sua obra está impregnada de temas populares, ainda vivos na memória do povo. O certo é que apesar de vários dos seus sucessos musicais terem sido lançados numa fase ufanista da música brtasileira, Caymmi continuou compondo e cantando canções com temas baianos que têm, inclusive,  um valor documental, o que  consolida a sua reputação como o mais importante compositor e cantor baiano no período e criador de um estilo singular.

Em 60 anos de carreira, Dorival Caymmi gravou cerca de 20 discos, mas o número de versões de suas músicas feitas por outros intérpretes é praticamente incalculável. Sua obra, considerada pequena em quantidade, compensa essa falsa impressão com a inigualável qualidade de algumas obras-primas. Entre as canções de grande sucesso pode-se citar: A preta do acarajé, O que é que a baiana tem, A Lenda do Abaeté, Promessa de Pescador, É Doce Morrer no Mar, Marina, Não Tem Solução, João Valentão, Maracangalha, Saudade de Itapoã, Doralice, Samba da Minha Terra, Lá Vem a Baiana, Sábado em Copacabana, Nem Eu, Nunca Mais, Saudades da Bahia, Oração pra Mãe Menininha, “Rosa Morena”, “Eu Não Tenho Onde Morar”, “Promessa de Pescador”, “Das Rosas, Saudades da Bahia, Cantiga pra Gabriela,Vou ver Juliana, etc. Em 1994, a Editora Lumiar lançou o songbook com suas obras, acompanhado por três CDs.

Aqui fica a minha homenagem ao inesquecível cantor da Bahia.

Festa de Yemanjá na Bahia

 

 

“Quem desejar conhecer as grandes festas populares da Bahia – as mais belas festas populares do Brasil – que chegue a Salvador nos últimos dias de novembro e não tenha pressa de voltar. Vai conhecer todo um ciclo de festejos, em que a tradição ainda não morreu, a alma popular se expande com toda sua naturalidade e encontra um mundo dos mais ricos em pureza, em beleza, em poesia, em colorido. A cidade sabe entregar-se ao seu povo, sabe com ele fundir-se num só organismo, tornar-se como um único ser, cheio da mais completa vitalidade, da mais graciosa e perfeita comunhão.

Do último dia de novembro até oito de dezembro – o dia da Santa – temos a festa da Conceição da Praia. Logo após o Natal, Ano Bom, com a festa de Nosso Senhor dos Navegantes. E vem a seguir Reis, com os “ternos“; a festa do Bonfim, na “segunda dominga, depois da Epifania“, com o esplendor da igreja aliado aos festejos profanos, indo da lavagem do templo até a “segunda-feira da Ribeira“; a 2 de fevereiro, festa de Iemanjá, em vários recantos do Recôncavo, mas culminando no Rio Vermelho. O Carnaval, a Semana Santa, assistindo antes uma pesca do Xaréu. É programa não somente para o viajante despreocupado, mas também para o estudioso, que aproveitará os largos intervalos para conhecer mais de perto com as intimidades noturnas de suas ruas desertas – esta cidade, tão cheia de mistérios e sensualismo. Que não se perca um minuto da estrada na cidade mais cantada pelos poetas e compositores brasileiros. Há muita coisa que a Bahia tem e que não se mostra assim de primeira vista; também esta cidade gorda tem reservas para os eleitos, para os que não a desejam encontrar na primeira esquina, sorridente e fácil.”

TAVARES, Odorico. Bahia – Imagens da Terra e do Povo. 1951, p. 15.

 

O texto acima foi escrito por Odorico Tavares, nos anos 50. Algumas coisas mudaram na Bahia, mas o calendário das festas tradicionais populares continua o mesmo. Amanhã o bairro do Rio Vermelho estará em festa para saudar Yemanjá, a rainha do mar. Pescadores, artistas, turistas e o povo baiano, todos participam da festa e Dorival Caymmi compôs uma canção em homenagem à rainha do mar: Yemanjá:

 

2 de fevereiro

Dia dois de fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
Pra salvar Yemanjá

Eu mandei um bilhete pra ela
Pedindo para ela me ajudar
Ela então me respondeu
Que eu tivesse paciência de esperar
O presente que eu mandei pra ela
De cravos e rosas vingou

Chegou, chegou, chegou
Afinal que o dia dela chegou…

 

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