Para começar a semana

 

 

Tempo

 

Adélia Prado

 A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

Novos poemas de Adélia Prado

 

A Paciência e seus limites

Dá a entender que me ama

mas não se declara.

Fica mastigando grama,

rodando no dedo sua penca de chaves,

como qualquer bobo.

Não me engana a desculpa amarela:

‘quero discutir lírica com você’.

Que enfado! Desembucha, homem,

 tenho outro pretendente

 e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio

 que esse seu verso doente.

 

Senha

 Eu sou uma mulher sem nenhum mel

 eu não tenho um colírio nem um chá

 tento a rosa de seda sobre o muro

 minha raiz comendo esterco e chão.

 Quero a macia flor desabrochada

 irado polvo cego é meu carinho.

 Eu quero ser chamada rosa e flor

 Eu vou gerar um cacto sem espinho.

 

Humano

A alma se desespera,

mas o corpo é humilde;

ainda que demore,

mesmo que não coma,

dorme.

 

Poemas de Adélia Prado, do novo livro Miserere (Record – 2013) que será lançado nesta quinta-feira.

.

 

O tempo segundo Adélia Prado

 

Tempo

 Adélia Prado

A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

Adélia Prado

 

 BRIGA NO BECO
                     Adélia Prado

 Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior,
                                             [fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo
                                           [ graças.
Desde então faço milagres.

(De Bagagem, 1976)