E por falar em futebol…

 

Sermão da planície (para não ser escutado)

 

 Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Jornal do Brasil, em 18 de junho de 1974.

 Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranqüilidade.

Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assistir às partidas, pois não voltam com decepção ou enfarte.

Bem-aventurados os que não têm a paixão clubista, pois não sofrem de janeiro a janeiro, com apenas umas colherinhas de alegria a título de bálsamo, ou nem isto.

Bem-aventurados os que não escalam, pois não terão suas mães agravadas, seu sexo contestado e sua integridade física ameaçada, ao saírem do estádio.

Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, projéteis, contusões, fraturas, e mesmo da glória precária de um dia.

Bem-aventurados  os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura.

Bem-aventurados os fotógrafos que trocaram a documentação do esporte pela dos desfiles de modas, pois não precisam gastar tempo infindável para fotografar o relâmpago de um gol.

Bem-aventurados os fabricantes de bolas e chuteiras, que não recebem as primeiras na cara e as segundas na virilha, como os atletas e assistentes ocasionais de peladas.

Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a tempo de acompanhar a Copa do Mundo, pois, assistindo pelo aparelho do vizinho, sofrem sem pagar 20 prestações pelo sofrimento.

Bem-aventurados os surdos, pois não os atinge o estrondar das bombas da vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores, carentes de exorcismo.

Bem-aventurados os que não moram em ruas de torcida institucionalizada, ou em suas imediações, pois só recolhem 50% do barulho preparatório ou comemoratório.

Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa os campeões, ou do lance imprevisível, que lhes destrói a invencibilidade.

Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863, quando se codificaram as leis do futebol, pois escaparam dos tormentos da torcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota como pela vitória do time bem-amado.

Bem-aventurados os que, entre a bola e o botão, se contentaram com este, principalmente em camisa, pois se consolam mais facilmente de perder o botão da roupa do que o bicho da vitória.

Bem-aventurados os que não confundem a derrota do time da Lapônia pelo time da Terra do Fogo com a vitória nacional da Terra do Fogo sobre a Lapônia, pois a estes não visita o sentimento de guerra.

Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração.

 

 

Festas Juninas no Nordeste

 

 Desenho de Edilson da Silva Araujo

A maior manifestação popular brasileira, depois do Carnaval, acontece no mês de junho, sobretudo no Nordeste. As festas juninas e os seus respectivos padroeiros são lembrados em todo o país, mas no Nordeste as comemorações são mais pitorescas, recheadas de tradições, cores, cheiros e ritmos capazes de aguçar os cinco sentidos, mesmo para aqueles que nunca viveram a experiência.

O forró pé de serra – executado com sanfona, zabumba e triângulo – invade as ruas das cidades nordestinas. O colorido das bandeirolas coloridas e das flores de papel de seda alegram e decoram as ruas, casas e vitrines

Em cada cidade um jeito especial de comemorar. A maioria das famílias festeja os santos de junho, a começar por Santo Antônio, alvo de forte devoção popular; ele preserva sua força na fé, pois muitas famílias rezam as trezenas em sua homenagem. Assim, além de querido pelos mais velhos, Santo Antonio ganhou fama de casamenteiro, o que faz com que seja fervorosamente requisitado pelas moças casamenteiras, que fazem promessas ao santo na esperança de arranjar marido.

Mas, se Santo Antonio ajuda a unir corações, São João é o mais animado e o mais festejado, pois ele reina nas mesas juninas, repletas de iguarias, símbolos da colheita farta; ele anima os salões ao som do forró, enquanto pipocam foguetes e fogos de artifício diversos As rezas e simpatias são, na maioria das vezes, pretexto para sorrir, brincar, estabelecer contatos entre amigos e familiares. Por outro lado, São João pode ser o responsável por consolidar os namoros arranjados pelo casamenteiro e festejados no dia 12, dia dos namorados, nas conversas ao pé das fogueiras ou ao ritmo do forró executado pelos sanfoneiros, dançado bem agarradinho. São Pedro, não entra nessa história, pois tem a missão de consolar as viúvas, mas também tem fogueiras acesas em sua homenagem.

A pluralidade das festas juninas tem um quê especial no cardápio. Com delícias irresistíveis, o melhor é  esquecer da dieta e se entregar sem remorsos à degustação de pratos típicos, como a canjica, a pamonha, bolos de fubá, tapioca e carimã; broas de milho, além, é óbvio, do milho e amendoins cozidos, quentinhos, e dos licores de jenipapo, cajá, maracujá, passas, pitanga, figo, laranja e jaboticaba, néctar dos deuses!

As festas juninas têm como símbolos a fé, o amor, o fogo, a música e as danças, além das comidas e bebidas típicas regionais. Elas reúnem famílias cujos membros vivem em outras cidades, simplesmente para comemorar, dançar, degustar iguarias típicas da época.

Um poema cantado

Dentro de mim mora um anjo

                                                (Sueli Costa/Cacaso)

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim

Dentro de mim mora um anjo
Que tem a boca pintada
Que tem as unhas pintadas
Que tem as asas pintadas
Que passa horas à fio

No espelho do toucador
Dentro de mim mora um anjo
Que me sufoca de amor

Dentro de mim mora um anjo
Montado sobre um cavalo
Que ele sangra de espora
Ele é meu lado de dentro
Eu sou seu lado de fora

 

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que arrasta suas medalhas
E que batuca pandeiro
Que me prendeu em seus laços
Mas que é meu prisioneiro
Acho que é colombina
Acho que é bailarina
Acho que é brasileiro

 

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim