Historinha

 

Fiquei sem sono e decidi ligar o computador. Lembrei de uma historinha que meu avô contava – quando eu era criança – e resolvi escrevê-la. Era mais ou menos assim:

 Leni David

“Em uma rua qualquer de uma cidadezinha sem importância, morava um marceneiro. Ele cuidava bem das suas ferramentas e não gostava de emprestá-las. Ele as amolava, polia, desempenava, lubrificava e as guardava num painel que ficava pendurado à parede. Gostava tanto das suas ferramentas que até lhes dava nomes. O martelo era chamado de toc-toc, o alicate, de puxa-puxa, o serrote de vai-vem, e assim sucessivamente.

Na mesma rua morava um homem que gostava de pedir emprestado as ferramentas do marceneiro e este, mesmo a contragosto as emprestava. Certa vez ele emprestou o toc-toc e este não voltou. Desaparecera…

Algum tempo depois, o filho do homem que gostava de emprestar ferramentas entrou na marcenaria e anunciou:

– Seu Fulano, meu pai mandou pedir o seu vai-vem emprestado.

Ainda ressabiado com o desaparecimento do martelo, o marceneiro respondeu:

– Menino, vai e diz ao teu pai, que se vai-vem fosse e viesse, vai-vem iria. Mas como vai-vem vai e não vem, vai-vem não vai.”

 

Se o menino soube dar o recado ao pai, eu não sei, e o meu avô não comentou. Lembro  que eu sorria muito e que tentava repetir a frase do marceneiro, sem errar. Deu certo, pois hoje fui capaz de escrever a historinha sem nenhuma dificuldade.

– Se eu a acho engraçada?

– Sei lá! Sei apenas que gostava de ouvi-la e que fui capaz de reproduzi-la. E como fazem os internautas: rsrsrsrs… só isso.

 

As novenas da Igreja dos Remédios

 As cantoras do coro

 Leni David

Eu devia ter uns doze anos quando comecei a participar do coro da igreja dos Remédios, junto com outras meninas, vizinhas da mesma rua. Ajudávamos a cantar as trezenas de Santo Antônio, que aconteciam de primeiro a treze de junho, e as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no mês de outubro. Participar do coro da Igreja era um privilégio, segundo as cantoras oficiais, que recebiam, inclusive, um pagamento simbólico concedido pelo Padre Aderbal. As cantoras, elas nos permitiam subir até o coro para responder a ladainha que era entoada durante as celebrações, mas não podíamos conversar, sorrir, ou tocar em qualquer objeto que estivesse exposto. Não nos importávamos com isso. O importante era responder o ora pronobis na hora certa e com a voz bem afinada.

Dona Yolanda, esposa de um médico conceituado da cidade, cantava, mas a sua principal função era tocar o órgão. Como eu achava bonito aquele som! Dona Meranta e Dona Pombina as catequistas – elas ensinaram o catecismo à maioria das meninas da cidade daquela época, mas nas novenas elas se transformavam em cantoras. Dona Tita morava na nossa rua, era viúva e tinha uma voz forte e límpida, bonita. Havia outras cantoras, mas não me lembro dos nomes. A chefe, porém, era Dona Catarina, também zeladora da igreja. Ela decidia tudo: os hinos que deveriam ser entoados, se a ladainha seria em latim ou português e a que momento deveríamos entrar na cantoria. Não reclamávamos de nada e ainda ficávamos contentes quando cada uma de nós recebia duas balas de mel, uma no início “para adoçar”.a garganta, e a outra no final, como brinde.

Participávamos do coro há mais de dois anos. Assistíamos às celebrações do alto, sem ninguém à nossa frente e ainda nos divertíamos. Amávamos quando o Padre Aderbal, que era um pouco gordinho, careca e que tinha dois lindos olhos azuis, levanta os olhos e as mãos para os céus. Isso acontecia quando os sinos repicavam e o turíbulo espalhava o aroma do incenso. Ajoelhado, olhos e mãos voltados para o alto, em atitude de adoração, tínhamos a impressão de que ele iria voar. Nos controlávamos e sorríamos baixinho, de modo que ninguém percebia.

Certa vez combinamos de chegar à igreja bem cedo. Chegamos bem antes das sete. Pedimos a chave do coro ao sacristão, que também era o sineiro. Para ensaiar – explicamos. E ele, sem nenhuma atitude hostil atendeu à nossa solicitação. Subiu para tocar a primeira chamada da novena. Subimos a escada que levava ao coro. As pessoas já começavam a chegar à igreja. Ensaiávamos a ladainha quando Dona Yolanda chegou. Iara, que havia ficado como porteira, deixou que ela entrasse e ao vê-la chegar no alto da escada trancou a porta, por dentro. A primeira chamada da novena já havia sido feita, mas faltava a segunda e o sacristão não estava do lado de dentro. Iara não hesitou. Subiu os degraus que levavam à torre, de dois em dois, e tocou o sino como nunca mais ouvi tocar em toda a minha vida, durante uns cinco minutos. Festivo, barulhento, emocionante! Isso foi bom porque, nesse ínterim, as cantoras haviam chegado e batiam na porta do coro, em desesperadas, pois a novena começaria às 19h. Dona Yolanda, também, entrou em desespero:

– Quem trancou a porta? O que vocês fizeram? Abram a porta, já!

Iara que já havia repicado o sino e encoberto o barulho feito pelas cantoras, apareceu com a cara mais inocente do mundo e explicou que havia perdido a chave enquanto tocava a segunda chamada da novena. Dona Yolanda nos olhou com ar severo e resmungou:

– Quem vai cantar?

E nós, em coro, respondemos:

– Nós!

Ela sentou-se resignada diante do órgão e as notas musicais preencheram o templo. Geraldina, filha de Dona Tita e a mais velha do grupo – tinha uns quatorze anos – com o livreto da ladainha nas mãos instalou-se junto ao órgão. Dona Yolanda olhou incrédula e deu os primeiros acordes. A voz de Geraldina ecoou límpida e melodiosa e todos se voltaram para o coro, até o Padre. E o melhor é que ela cantava em latim – e o nosso coro respondia o ora pronobis na maior afinação e felicidade. Até Dona Yolanda se entusiasmou.

Entoamos outros cânticos e no encerramento da celebração eu deveria cantar o hino de Nossa Senhora do Rosário. Até hoje tenho orgulho disso! Como tudo correra bem até ali, Dona Yolanda quis saber quem iria cantar no encerramento e eu me apresentei. Ela ainda ponderou:

– Mas esse hino é muito difícil. Tem certeza que quer cantar esse mesmo?

Eu respondi que sim e ela deu os primeiros acordes. Enchi os pulmões e soltei a voz:

Volvei oh Maria o vosso olhar

Lá do vosso santuário

Atendei nossos rogos nossas preces

Oh Virgem senhora do Rosário…

 

Juro que foi lindo, tão bonito que fiquei emocionada. Quando terminou estava com os olhos marejados de lágrimas. A maior surpresa, no entanto, foi a atitude de Padre Aderbal. Antes de tirar os paramentos, dirigiu-se aos fiéis e pediu uma salva de palmas “para as jovens cantoras do coro, que haviam embelezado com as suas vozes juvenis a festa de Nossa Senhora”. Todos aplaudiram.

Foi aí que nos lembramos da chave. Onde estava a chave da porta do coro? Preocupadas pensávamos em subir até a torre para procurá-la quando Iara, com a cara mais inocente do mundo confessou:

– A chave está aqui. E puxou o elástico da manga bufante do seu vestido rosa. E justificou: se eu entregasse a chave, Dona Yolanda abriria a porta para as cantoras e nós não queríamos que elas entrassem. Elas não nos deixariam cantar.

Descemos a escadaria que conduzia ao térreo, silenciosas. Quando a porta se abriu Dona Catarina decretou: – Hoje não tem bala nenhuma. Acabou! E não voltem aqui nunca mais, ouviram? Vocês estão proibidas de subir ao coro!

Fomos embora, felizes. Fomos crianças felizes. Pena que não virei cantora…

Foto: Leni David

Problema de troco

 

                              Leni David

Seo João era conhecido como “mão de onça” na cidade em que vivia. Era um senhor alto, pele clara, olhos acinzentados, cabelos cortados curtos, voz de trovão. Não sei se tinha esse apelido porque tinha as mãos grandes, ou se tinha algo a ver com sovinice. Só sei que ninguém ousava chamá-lo assim. E apesar da sua fama de briguento, Seo João era muito querido.

Havia um café na praça principal, onde os fazendeiros da região se reuniam para conversar e negociar, sobretudo pela manhã. Em frente ao café havia uma banca de jornais e Seo João pegava o seu exemplar, todos os dias, antes de ir para casa almoçar. Dobrava-o ao meio, enfiava debaixo do braço, ajeitava o chapéu no alto da cabeça e entrava na sua Rural Willys.

A mania de substituir o troco por bombons começou a ser disseminada, mesmo nas pequenas cidades do interior e o dono da banca de jornais adotou-a. No primeiro dia em que Seo João recebeu aquele troco inusitado, perguntou quanto valia aquilo e o vendedor informou que era equivalente a vinte centavos (de cruzeiro) o que, finalmente, não valia muita coisa.

O tempo passava, Seo João comprava o jornal e colocava as balinhas que recebia como troco no bolso do paletó. Em casa depositava-as num recipiente sobre a escrivaninha e avisava aos familiares que não tocassem nos bombons, pois precisaria deles.

Um dia ele chegou à banca de jornais e perguntou:

– Quanto é o jornal, Seo Pelé?

E o vendedor, apesar de surpreso, respondeu solícito:

– Dois cruzeiros e oitenta centavos, Seo João!

Ele enfiou a mão no bolso, retirou um punhado de balas, que depositou sobre as revistas, e pediu ao vendedor:

– Confira aí, Seo Pelé; veja se o valor está correto.

O  vendedor arregalou os olhos, espantado, e, sem entender o que se passava, questionou:

– Mas o que é isso, Seo João, pra que eu quero esses bombons?

– Ora, Seo Pelé, durante todo esse tempo o senhor me deu essas balinhas como troco. Já que elas valem dinheiro, guardei-as para pagar o jornal. Algum problema?

Seo Pelé coçou a cabeça, em silêncio, e recebeu os bombons.

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Agora respondam: Seu João era sovina, ou sabia valorizar o seu dinheiro?

 

 

Festas Juninas no Nordeste

 

 Desenho de Edilson da Silva Araujo

A maior manifestação popular brasileira, depois do Carnaval, acontece no mês de junho, sobretudo no Nordeste. As festas juninas e os seus respectivos padroeiros são lembrados em todo o país, mas no Nordeste as comemorações são mais pitorescas, recheadas de tradições, cores, cheiros e ritmos capazes de aguçar os cinco sentidos, mesmo para aqueles que nunca viveram a experiência.

O forró pé de serra – executado com sanfona, zabumba e triângulo – invade as ruas das cidades nordestinas. O colorido das bandeirolas coloridas e das flores de papel de seda alegram e decoram as ruas, casas e vitrines

Em cada cidade um jeito especial de comemorar. A maioria das famílias festeja os santos de junho, a começar por Santo Antônio, alvo de forte devoção popular; ele preserva sua força na fé, pois muitas famílias rezam as trezenas em sua homenagem. Assim, além de querido pelos mais velhos, Santo Antonio ganhou fama de casamenteiro, o que faz com que seja fervorosamente requisitado pelas moças casamenteiras, que fazem promessas ao santo na esperança de arranjar marido.

Mas, se Santo Antonio ajuda a unir corações, São João é o mais animado e o mais festejado, pois ele reina nas mesas juninas, repletas de iguarias, símbolos da colheita farta; ele anima os salões ao som do forró, enquanto pipocam foguetes e fogos de artifício diversos As rezas e simpatias são, na maioria das vezes, pretexto para sorrir, brincar, estabelecer contatos entre amigos e familiares. Por outro lado, São João pode ser o responsável por consolidar os namoros arranjados pelo casamenteiro e festejados no dia 12, dia dos namorados, nas conversas ao pé das fogueiras ou ao ritmo do forró executado pelos sanfoneiros, dançado bem agarradinho. São Pedro, não entra nessa história, pois tem a missão de consolar as viúvas, mas também tem fogueiras acesas em sua homenagem.

A pluralidade das festas juninas tem um quê especial no cardápio. Com delícias irresistíveis, o melhor é  esquecer da dieta e se entregar sem remorsos à degustação de pratos típicos, como a canjica, a pamonha, bolos de fubá, tapioca e carimã; broas de milho, além, é óbvio, do milho e amendoins cozidos, quentinhos, e dos licores de jenipapo, cajá, maracujá, passas, pitanga, figo, laranja e jaboticaba, néctar dos deuses!

As festas juninas têm como símbolos a fé, o amor, o fogo, a música e as danças, além das comidas e bebidas típicas regionais. Elas reúnem famílias cujos membros vivem em outras cidades, simplesmente para comemorar, dançar, degustar iguarias típicas da época.

Faxina no céu

                                                                                         Leni David 

As nuvens escuras foram chegando devagar e cobriram o azul. Em pouco tempo, trovões ribombavam e relâmpagos desenhavam ziguezagues no espaço.

A mãe fechou portas e janelas, desligou a televisão;  sobre a mesa da sala, pôs folhas de papel, cola e revistas antigas.  Ao lado das meninas recortava papéis coloridos e inventava desenhos,  jeito de esconder que tinha medo de trovoadas.

A chuva caía forte e intermitente; mais trovões, mais relâmpagos e uma queda da energia elétrica;  felizmente ainda era dia.

Mais um pipoco, daqueles que parecem partir o céu em milhões de pedaços. Todas estremeceram, se  entreolharam, e a menorzinha com os olhos arregalados exlamou:

– Eta! O céu estava sujo, mas Deus exagerou na faxina… Desse jeito ele vai quebrar tudo!