O Brasil no Le Monde

 

Cartas de Paris

                                                                   Carolina Nogueira

Quem visita Paris esta semana vai certamente se surpreender ao esbarrar com a bandeira brasileira literalmente a cada esquina.

O jornal Le Monde está fazendo a maior propaganda do seu número especial sobre o Brasil – que estampa o lisonjeiro título de “o gigante se impõe”.

Mas desde a capa depreende-se que a revista vai além dos clichês óbvios. Ao lado do Corcovado, carnaval e futebol, a ilustração inspirada na bandeira brasileira faz referências à indústria aeronáutica, petróleo, energia nuclear, bio-combustíveis, jogos olímpicos. (Só não entendi muito bem a referência ao trigo ao invés da soja, mas tudo bem.)

Ao invés de uma entrevista com o presidente Lula como carro-chefe – o que o jornal provavelmente conseguiria, se quisesse – a publicação escolheu retratá-lo por meio de um abecedário com uma seleção de frases colhidas de seus discursos.

Algo inspirado no livro do Ali Kamel, desconfio. Editada com uma bela foto do presidente posando de estadista, o abecedário revela uma opção editorial honesta em relação à figura de Lula – sem oba-oba nem desdém.

Em seguida, a seção entitulada “25 anos de democracia” me surpreendeu, ao propor um enfoque que eu sinceramente não me lembro de ter visto na própria imprensa brasileira. Nós fizemos este balanço?

Este que o Monde propõe começa colocando em perspectiva o indiscutível papel de liderança do Brasil no mundo (“quem pode imaginar, hoje, resolver os problemas do mundo sem o Brasil?”, pergunta Sarkozy), temperado pelas “derrapadas” diplomáticas dos discursos de Lula.

Em seguida, ressalta a parceria militar estratégica com a França e avalia as ambições nucleares “preocupantes” do país. E adiciona um balanço melancólico das alianças regionais latino-americanas.

No balanço político, além dos perfis dos presidenciáveis e de alguns artigos mais ou menos bobos sobre a biografia de Lula e o passado da ditadura militar, uma entrevista com o ex-embaixador francês no Brasil, Alain Rouquié, revela um conhecimento de causa surpreendente – e uma falta de condescendência tipicamente francesa que, longe de ofender, oferece valioso material para nossa auto-análise.

A frase que serve de título para a entrevista, “os deputados brasileiros são eleitos na base do serviço prestado”, resume a ópera: clientelismo e um arcabouço legal engessado, que não ajuda as coisas a mudarem.

Sobre economia, a revista analisa os riscos de um “superaquecimento”. Nos artigos de sociedade, o fenômeno dos evangélicos divide espaço com uma análise madura – e nada sensacionalista – das nossas preocupações com uma violência endêmica.

Aos já cansados álbuns de paisagens, o portfolio escolhido para a revista mostra o cotidiano de um grupo que trabalha em uma favela. E na rubrica sociedade, telenovelas e futebol, que é abordado em seu potencial de ascenção social.

Seguindo a tradição francesa de uma imprensa que não se furta e flertar com a sociologia, a revista coloca a questão do que restou das raízes africanas de nosso povo e dedica algumas páginas às mais importantes regiões brasileiras. Há espaço até para a nova literatura brasileira, retratada em Milton Hatoum– ainda tão pouco conhecido no Brasil.

Para terminar, a alegria de viver brasileira – sem dúvida alguma, a parte do nosso país que o francês mais admira – em uma matéria que foge do óbvio, revelando nossa inventividade na arte.

Pelo nosso tamanho continental e por todas as contradições com as quais nos acostumamos a conviver, eu acho dificílimo definir o Brasil. Mas, sinceramente, o Monde não fez feio, não. Pas mal du tout.

 

PS: Esta coluna foi fortemente encorajada pela Gisele, das Cartas de Buenos Aires, que está de passeio por aqui. Obrigada pela “pauta”!

*Carolina Nogueira é jornalista e mora há dois anos em Paris, de onde mantém o blog Le Croissant

Fonte: Blog do Noblat

Como ser brasileiro em Lisboa sem dar muito na vista

 

Sim, eu sei que não será culpa sua, mas se você desembarcar em Lisboa sem um bom domínio do idioma, poderá ver-se de repente em terríveis águas de bacalhau. Está vendo ? Você já começou a não entender…

Um casal brasileiro, amigo meu, alugou um carro e seguia tranqüilamente pela estrada Lisboa-Porto, quando deu de cara com um aviso : « Cuidado com as bermas ». Eles ficaram assustados – que diabo seria berma ? Alguns metros à frente, outro aviso : « cuidado com as bermas ». Não resistiram : pararam no primeiro posto de gasolina, perguntaram o que era uma berma e só respiraram tranqüilos quando souberam que berma era o acostamento.

Você poderá ter alguns probleminhas se entrar numa loja de roupas desconhecendo certas sutilezas da língua. Por exemplo, não adianta pedir para ver os ternos – peça para ver os fatos. Paletó é casaco. Meias são peúgas. Suéter é camisola – mas não se assuste, porque calcinhas femininas são cuecas. (Não é uma delícia ?). Pelo mesmo motivo, as fraldas de criança são chamadas cuequinhas de bébe. Atenção também para os nomes de certas utilidades caseiras. Não adianta falar em esparadrapo – deve-se dizer pensos. Pasta de dente é dentifrício. Ventilador é ventoinha. E no caso gravíssimo de você ter de tomar uma injeção na nádega, desculpe, mas eu não posso dizer que é feio…

Ah, que maravilha o futebol em Portugal ! Um goleiro é um guarda-redes. Só isso e mais nada. Os jogadores do Benfica usam camisola encarnada – ou seja, camisa vermelha. Gol é Golo. Bola é esférico. Pênalti é penálti. Se um jogador se contunde em campo, o locutor diz que ele se aleijou, mesmo que se recupere com uma simples massagem. Gramado é relvado ; muito mais poético, não é ?…

Um sujeito preguiçoso é um mandrião. Um indivíduo truculento é um matulão. Um tipo cabeludo é um gadelhudo. Quando não se gosta de alguém, diz-se : « não gramo aquele gajo ». Quando alguém fala mal de você e você não liga, deve dizer : « estou-me nas tintas » ; ou então : « estou-me marimbando »… Um homem bonito que as brasileiras chamariam pão, é chamado pelas portuguesas de pessegão. E uma garota de fechar o comércio, é, não sei porque, um borrachinho.

Mas, o pior equívoco em Portugal, foi quando pifou a descarga da privada do meu quarto de hotel e eu telefonei para a portaria : « podem me mandar um bombeiro para consertar a privada ? » O homem não entendeu uma única palavra. Eu devia ter dito : « ó Pá, manda um canalizador para reparar o autoclismo da retrete ».

Ruy Castro. « Viaje Bem », Revista de bordo da VASP n° 8, 1978.

 

Em tempo: O post já foi publicado em outro blog e o leitor José Carlos achou que “seria conveniente salientar que esse texto não teria hoje a mesma importância como na época em que foi originalmente publicado”.  E ele  acrescenta algumas palavras que não fazem parte do texto publicado:

 BICA : cafezinho
BICHA : fila
STUB : ônibus urbano
TOSTA : torrada
TOSTA MISTA : misto quente
PENSO HIGIENICO : absorvente intimo
GRELOS : folhas do nabo
PICA : injeção
PREGO : bife no pão

Mais um interessante e sugestivo comenário enviado por Vanessa Garcia, do blog Pérolas de Mulher :

 “Conheço muito bem todas as confusões das diferenças linguísticas entre brasileiros e portugueses. Tenho um português dentro de casa, meu pai. E a vida inteira sempre ouvi dele que odiava entrar em bicha e que iria na padaria comprar um cacete  e que teria que ir buscar os putinhos (netos dele, pois tem filhas do primeiro casamento) e levá-los para passear. “ Pior é quando ele e minha mãe (que é brasileira) dançam de vez em quando após o almoço música pimba (músicas portuguesas com duplo sentido nas letras, são engraçadas, porém cafonas demais) por pura diversão”.

Obrigada, Vanessa, pelo comentário oportuno e muito esclarecedor. Aproveito para acrescentar que uma jovem (uma menina, ou garota, como dizemos aqui) em Portugal é chamada de RAPARIGA. Não é engraçado? Rapariga para nós (pelo menos na Bahia) é outra coisa!

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega; era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas d’água que caiam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles, Quadrante I, Ed. do Autor, 5a ed. Rio de Janeiro, 1968, p. 10

 

L’art d’être heureux

Il y a eu un temps où ma fenêtre s’ouvrait en face d’un chalet. Sur la crête du chalet, il y avait un grand œuf de porcelaine bleu. Sur cet œuf, un pigeon blanc avait l’habitude de se poser. Or, dans les jours limpides, quand le ciel était de la même couleur que l’œuf de porcelaine bleu, le pigeon semblait posé en air. J’étais un enfant, je trouvais cette illusion merveilleuse et je me sentais complètement heureux.

Il y a eu un temps où ma fenêtre s’ouvrait sur un canal. Dans le canal un bateau oscillait. Un bateau chargé de fleurs. Où partaient ces fleurs ? Qui les achetaient ? Dans quel vase, dans quel salon, devant qui brilleraient-elles durant leurs brève existence ? Et quelles mains les avaient créées ? Et quelles personnes souriaient de joie en les recevant ? Je n’étais plus un enfant, mais mon âme devenait complètement heureuse.

Il y a eu un temps où ma fenêtre s’ouvrait sur une ville qui semblait faite de craie. Près de ma fenêtre il y avait un petit jardin presque sec. C’était une époque de sécheresse, de terre poussiéreuse, et le jardin semblait mort. Mais tous les matins venait un pauvre homme avec un sceau et, en silence, il jetait avec la main quelques gouttes d’eau sur les plantes. Ce n’était pas un arrosage ; c’était une espèce d’aspersion rituelle pour que le jardin ne meure pas. Et moi, je regardais les plantes, l’homme, les gouttes d’eau qui tombaient de ses doigts maigres et mon cœur devenait complètement heureux.

Il y a eu un temps où ma fenêtre s’ouvrait sur un parc où un grand manguier élargissait sa cime touffue et ronde. A l’ombre de l’arbre, assise sur une natte, une femme restait presque toute la journée, entourée d’enfants. Elle racontait des histoires. Moi, je ne pouvais l’entendre du haut de ma fenêtre et même si je l’entendais, je ne la comprendrais pas, parce que cela s’est passé dans un pays éloigné , dans une langue difficile. Mais les enfants avaient une telle expression sur leurs visages, et quelques fois faisaient avec leurs mains des arabesques tellement compréhensibles que je faisait partie de l’auditoire, j’imaginais les sujets et ses péripéties et je me sentais complètement heureux.

Quelques fois, j’ouvre ma fenêtre et je rencontre le jasminier en fleur. D’autres fois je rencontre des nuages épais. J’aperçois des enfants qui vont à l’école. Des moineaux qui sautent sur un mur. Des chats qui ouvrent et ferment les yeux, en rêvant sur les moineaux. Des papillons blancs, deux à deux, comme s’ils étaient reflétés  sur le miroir de l’air. Des guêpes qui me rappellent toujours des personnages de Lope de Vega. De temps en temps, un coq chante. Parfois, un avion passe. Tout est correct, à sa place, en train d’accomplir sa destinée. Et moi, je me sens parfaitement heureux.

Mais, quand je parle de ces petits bonheurs habituels qui sont devant chaque fenêtre, on dit que ces choses n’existent pas ; on dit aussi qu’elles ne se réalisent que devant mes fenêtres, et d’autres disent, finalement, qu’il faut apprendre à regarder pour pouvoir les voir comme ça.

(Traduzido do Português por Leni David – Paris, 15/10/92).