Sobre a amizade

 

Lya Luft

“A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amiga é aquela a quem se pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair para pegar as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com as dela, ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.

Amigo é aquele a quem a gente recorre  quando se angustia demais, e ele chega confortando, chamando de “minha gatona” mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos. “Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta”. O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida afetiva. E que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados com… amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto.”

Florisvaldo Matos – Um poema de carnaval

 

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Tela de Carybé

 

Oficina de Carnaval

Florisvaldo Mattos

 

 Desenrole as palavras como

 se fossem veste sobre a pele

 e escreva suas frases como

 se alisasse um rosto (assim

 como nesta hora fazem os negros

 melhor do que os brancos).

 Saiba traduzir o silêncio

 na face angustiada de quem

 está dentro ou fora das cordas.

 Escute o sussurro das mãos

 ébrias de luz, cor e afagos;

 não apenas a voz, mas também

 o sotaque rascante do asfalto.

 Fale a língua do chão.

 Percorra praças, avenidas, ruas,

 mas também vielas e camarotes.

 Apare o suor do folião-pipoca

 e o dos que saracoteiam, à força

 de uísque, vinho e espumantes.

 Tenha olhos para ver o que sonha

 o som, o ganido das guitarras,

 mas também os seus gritos,

 a luta ancestral dos tambores.

 Liberte-se da mornança displicente.

 Descomplique-se. Na ponta

 dos dedos, nas teclas, no “mouse”,

 onde olhos são acentos, digite

 almas, gestos, alegrias, dores.

 Seque a veia das drogas,

 extraia seiva dos murmúrios.

 Desenrole com os sentidos

 o turbante dos Filhos de Ghandi,

 o brilho das contas de seus colares,

desvende a trama da trança rastafári.

 Leve para o texto esta verdade:

 gestos pensados, maciez e doçuras

 proclamam Salvador capital da folia

 e da paz em corações aflitos.

 E faça tatuagens no computador.

Salvador, 16-02-07