Leni David
O correio na minha rua é distribuído por uma jovem lourinha e simpática. Ela faz o seu trabalho montada numa bicicleta amarela. Todas as manhãs espreito a bicicleta da moça do correio e quando ela chega junto ao portão do edifício, desço as escadas correndo, digo ‘bom-dia’ sorrindo e abro ansiosa a caixinha de cartas, como se fosse o cofre do tesouro. O meu tesouro é feito de envelopes ornados de verde-amarelo!
Subo as escadas correndo, instalo-me numa cadeira e suprimo as barreiras entre o mundo onde estou e o meu mundo, quase do outro lado da terra; o mar sempre foi o grande depósito de segredos da humanidade, mas o Oceano Atlântico se transforma num riachinho, quando tenho uma carta nas mãos. O céu cinza fica azul e a saudade, sol de verão alimentando a vida. As letras miúdas ou grandes contam o cotidiano, as aventuras das crianças, as festas e, talvez por respeito à distância, se transformam em palavras tristes, quando as notícias são más.
As mensagens que chegam contam a vidinha morna do interior do Brasil. As vezes mensagens de carinho, quase um relatório amoroso do cotidiano de lá; outras vezes, de um jeito desconcertado, contam coisas assim : “faz oito meses que não chove no Nordeste e exatamente quatro meses que não cai uma gota de chuva aqui! O gado está morrendo, de sede e fome; ainda agüenta de pé graças ao bagaço da mata. O povo faz pena, não tem sequer água para beber. Ainda esta semana os camponeses de várias municípios se reuniram em frente à prefeitura, na tentativa de conseguir ajuda da municipalidade. O pior é que o prefeito diz que não tem verba, nem do Estado nem do Governo Federal… Dói na alma e faz mal à qualquer vivente, filho de Deus, olhar nos olhos daqueles homens e escutar as cantigas que as mulheres retirantes cantam na rua. Falo de cantiga porque meu vocabulário é pobre, pois de tanta tristeza, elas parecem lamentos.”
De tão longe (nem sei quantas léguas) sinto o coração apertando, um nó na garganta e uma vontade incontrolável de chorar. Penso na gente pobre nordestina, fruto da seca e da miséria. Falam em açudes, em irrigação e até em provação, argumento fácil, pretexto para depositar nas mãos de Deus a incapacidade dos homens! Pobre Deus, válvula de escape dos ignorantes e bode expiatório dos irresponsáveis, tantas vezes invocado para encobrir as incapacidades, tantas vezes responsabilizado pela miséria do povo!
Daqui imagino minha terra querida, « mãe gentil », cheia de contrastes, cores e vejo-a também madrasta desnaturada, patroa insaciável, comandada pela tirania dos poderosos. Vejo você mulher do sertão, desidratada, envelhecida pela labuta e pela desesperança e admiro você! Acredito em vocês, Marias, Joanas, Crispinas e Doralices. Confio em vocês que sobrevivem apesar das privações e que sabem cantar cantigas que doem na alma…. Admiro a força, das Ritas, Clarices, e Balbina, fruto do nada, ou fruto da desesperança, do desespero! Invejo vocês todas, capazes de abrir a boca no meio da praça e cantar… cantar o sofrimento e a falta de pão, cantar corajosamente, quando talvez o desejo maior seja de matar.
Eu acho que esse canto, talvez choro sufocado, seja a semente nova, plantada num espaço também novo, de pedra e asfalto. As lágrimas derramadas nos caminho, na solidão da roça foram sugadas pela terra seca e desapareceram no vazio da indiferença; agora o canto do asfalto está se misturando com o barulho dos motores dos carros, com o suor dos operários na rua, com a tristeza da dona de casa exausta; o canto do asfalto vai fazer barulho, vai incomodar a sesta do patrão.
Canta Inês, canta Clotilde, canta Madalena! Cantem com toda a força e cantem mais alto ainda! Quem sabe se numa dessas tardes de estio, esse canto do asfalto se transforma em hino! Canta mulher, canta mais, mesmo lamentos de doer na alma!
Paris, junho de 1993. (Publicada no jornal CAT, editado pelo MOC)
Observação: eu achava que essa crônica havia sido escrita há pouco tempo, mas quando vejo a data, me dou conta de que já se passaram quase vinte anos. E quantas coisas mudaram! O correio não traz mais cartas, somente contas. Os envelopes ornados de verde e amarelo desapareceram e a internet tornou-se o meio de comunicação mais utilizado no mundo. As mulheres que cantavam cantigas tristes, não cantam mais… e os movimentos sociais mudaram as estratégias.
O Nordeste? Continua seco e pobre!
Eu? Desencantada…