Historinha

 

Fiquei sem sono e decidi ligar o computador. Lembrei de uma historinha que meu avô contava – quando eu era criança – e resolvi escrevê-la. Era mais ou menos assim:

 Leni David

“Em uma rua qualquer de uma cidadezinha sem importância, morava um marceneiro. Ele cuidava bem das suas ferramentas e não gostava de emprestá-las. Ele as amolava, polia, desempenava, lubrificava e as guardava num painel que ficava pendurado à parede. Gostava tanto das suas ferramentas que até lhes dava nomes. O martelo era chamado de toc-toc, o alicate, de puxa-puxa, o serrote de vai-vem, e assim sucessivamente.

Na mesma rua morava um homem que gostava de pedir emprestado as ferramentas do marceneiro e este, mesmo a contragosto as emprestava. Certa vez ele emprestou o toc-toc e este não voltou. Desaparecera…

Algum tempo depois, o filho do homem que gostava de emprestar ferramentas entrou na marcenaria e anunciou:

– Seu Fulano, meu pai mandou pedir o seu vai-vem emprestado.

Ainda ressabiado com o desaparecimento do martelo, o marceneiro respondeu:

– Menino, vai e diz ao teu pai, que se vai-vem fosse e viesse, vai-vem iria. Mas como vai-vem vai e não vem, vai-vem não vai.”

 

Se o menino soube dar o recado ao pai, eu não sei, e o meu avô não comentou. Lembro  que eu sorria muito e que tentava repetir a frase do marceneiro, sem errar. Deu certo, pois hoje fui capaz de escrever a historinha sem nenhuma dificuldade.

– Se eu a acho engraçada?

– Sei lá! Sei apenas que gostava de ouvi-la e que fui capaz de reproduzi-la. E como fazem os internautas: rsrsrsrs… só isso.

 

Problema de troco

 

                              Leni David

Seo João era conhecido como “mão de onça” na cidade em que vivia. Era um senhor alto, pele clara, olhos acinzentados, cabelos cortados curtos, voz de trovão. Não sei se tinha esse apelido porque tinha as mãos grandes, ou se tinha algo a ver com sovinice. Só sei que ninguém ousava chamá-lo assim. E apesar da sua fama de briguento, Seo João era muito querido.

Havia um café na praça principal, onde os fazendeiros da região se reuniam para conversar e negociar, sobretudo pela manhã. Em frente ao café havia uma banca de jornais e Seo João pegava o seu exemplar, todos os dias, antes de ir para casa almoçar. Dobrava-o ao meio, enfiava debaixo do braço, ajeitava o chapéu no alto da cabeça e entrava na sua Rural Willys.

A mania de substituir o troco por bombons começou a ser disseminada, mesmo nas pequenas cidades do interior e o dono da banca de jornais adotou-a. No primeiro dia em que Seo João recebeu aquele troco inusitado, perguntou quanto valia aquilo e o vendedor informou que era equivalente a vinte centavos (de cruzeiro) o que, finalmente, não valia muita coisa.

O tempo passava, Seo João comprava o jornal e colocava as balinhas que recebia como troco no bolso do paletó. Em casa depositava-as num recipiente sobre a escrivaninha e avisava aos familiares que não tocassem nos bombons, pois precisaria deles.

Um dia ele chegou à banca de jornais e perguntou:

– Quanto é o jornal, Seo Pelé?

E o vendedor, apesar de surpreso, respondeu solícito:

– Dois cruzeiros e oitenta centavos, Seo João!

Ele enfiou a mão no bolso, retirou um punhado de balas, que depositou sobre as revistas, e pediu ao vendedor:

– Confira aí, Seo Pelé; veja se o valor está correto.

O  vendedor arregalou os olhos, espantado, e, sem entender o que se passava, questionou:

– Mas o que é isso, Seo João, pra que eu quero esses bombons?

– Ora, Seo Pelé, durante todo esse tempo o senhor me deu essas balinhas como troco. Já que elas valem dinheiro, guardei-as para pagar o jornal. Algum problema?

Seo Pelé coçou a cabeça, em silêncio, e recebeu os bombons.

**********

Agora respondam: Seu João era sovina, ou sabia valorizar o seu dinheiro?

 

 

Instante

                                                                               
                                                             Leni David

                      Os acordes de um violão  vadio,

                    fragmento perdido de canção

                    fez do silêncio melodia.

                    A paz embriagou a noite

                    o amor prevaleceu maior.

  

Historinha

Leni David

Fiquei sem sono e decidi ligar o computador. Lembrei de uma historinha que meu avô contava – quando eu era criança – e resolvi escrevê-la. Era mais ou menos assim:

“Em uma rua qualquer de uma cidadezinha sem importância, morava um marceneiro. Ele cuidava bem das suas ferramentas e não gostava de emprestá-las. Ele as amolava, polia, desempenava, lubrificava e as guardava num painel que ficava pendurado à parede. Gostava tanto das suas ferramentas que até lhes dava nomes. O martelo  era chamado de toc-toc, o alicate, de puxa-puxa, o serrote de vai-vem, e assim sucessivamente.

Na mesma rua morava um homem que gostava de pedir emprestado as ferramentas do marceneiro e este, mesmo a contragosto as emprestava. Certa vez ele emprestou o toc-toc e este não voltou. Desaparecera…

Algum tempo depois, o filho do homem que gostava de emprestar ferramentas entrou na marcenaria e anunciou:

– Seu Fulano, meu pai mandou pedir o seu vai-vem emprestado.

Ainda ressabiado com o desaparecimento do martelo, o marceneiro respondeu:

– Menino, vai e diz ao teu pai, que se vai-vem fosse e viesse, vai-vem iria. Mas como vai-vem vai e não vem, vai-vem não vai.”

Se o menino soube dar o recado ao pai, eu não sei e o meu avô não comentou. Lembro eu que sorria muito e que tentava repetir a frase do marceneiro, sem errar. Deu certo, pois hoje fui capaz de escrever a historinha sem nenhuma dificuldade.

– Se eu a acho engraçada?

– Sei lá! Sei apenas que gostava de ouvi-la e que fui capaz de reproduzi-la. E como fazem os internautas: rsrsrsrs… só isso.

“Noche de ronda”

    Leni David

Agustin Lara e Maria Felix foram personagens que fizeram parte da minha vida, embora eu vivesse numa cidadezinha preguiçosa do interior. Sabia que eram mexicanos, artistas, e que se amavam. Também assisti aos filmes onde ela representava papéis de mulheres apaixonadas, traídas ou traidoras, sempre bela e misteriosa.

Nesse tempo – eu era menina – um dos meus tios assobiava a canção Maria Bonita, de Agustin Lara, que  era cantada pelo  trio Los Panchos e era muito  apreciada pelos jovens da época. Eu gostava de ouvir a melodia, cantando mentalmente os versos e associando-os à imagem de Maria Felix, a morena de cabelos longos e olhos negros; a Maria Bonita da canção e a Maria Felix que eu via no cinema, eram a mesma pessoa, e as suas imagens se superpunham embaladas pela música.

Contam que as vidas de Agustin Lara e Maria Felix eram alimentadas pela paixão e pelo ciúme. Ela era bela, a canção era bonita, mas não sei explicar porque me agradava tanto; apesar de tudo achava aquele amor perfeito, arrebatador e violento, tão grande e tão inacessível quanto eram os personagens que o viviam… Pidiendo que me quiserias, qui convertieras en realidades mis ilusioes…

Muito tempo depois recebi de um casal de amigos, como presente de Natal, um disco onde Caetano Veloso cantavacanções latinas antigas, inclusive, a Maria Bonita de Agustin Lara; senti uma sensação estranha, mistura de alegria e medo, gosto de saudade e reencontro, desejo de mergulhar no passado e de reviver cenas ternas de um tempo perdido. Não sei quantas vezes repeti a mesma faixa do disco, mas sei que foram muitas, pois perguntaram-me em casa se ele tinha um defeito.

Acuerdate de Acapulco, de aquellas noches Maria Bonita, Maria del alma… embora imóvel na poltrona da sala, o meu pensamento passeava, ao som da música, entre as acácias do quintal do meu avô… um vestido de fustão branco… tranças castanhas amarradas por laços de fitas… o assobio vadio do meu tio, bogaris espalhados no chão do fim da tarde, cheiro forte de jasmim, pinceladas sangrentas e douradas no poente e…. La luna que nos miraba… y cuando la vi escondida, me arrodillé para besarte… o arrepio, a sensação de coração crescendo, disparado, ofegante; confusão de medo e prazer, à aproximação da boca menina do primeiro namorado.

A canção passou então a fazer parte das minhas fugas; os pequenos prazeres, os momentos tristes ou solitários quando a chuva cai fina e repetitiva… a canção que me embala, o sabor doce do vinho do Porto, o calor no rosto, o ritmo sedutor, volteios de violinos, palavras latinas, palavras de amor… Muitas são às vezes em que escapo da realidade envolvida pela melodia de Maria, como se estivesse fazendo uma travessura de criança levada, cometendo o pecando original como mulher madura, praticando um ato proibido, roubando um momento de alguém, só pra mim!

Como num conto de fadas, certo dia li num livro de Aloísio de Oliveira, o relato de uma cena em casa de Agustin Lara e Maria Felix, “digna de ter sido filmada para a posteridade”: uma briga do casal, seguida de uma forte discussão. Maria subiu  correndo a escadaria em direção aos seus aposentos. Agustin, que mantinha em casa, à sua disposição, quatro violinistas que o acompanhavam ao piano, cantou-lhe uma “verdadeira serenata com frases de amor e perdão”. Ela então reapareceu, com um ar ainda mais dramático; ele vai até o jardim para colher uma rosa e os dois, entre lágrimas e beijos se abraçaram no meio da escada.

Lindo e ridículo! Vida e música confundidas, história de amor tragicômica, como a vida da gente…. Sentimento turbulento mesclado de brutalidade e ternura, capaz de deixar rastros no tempo… beleza, sonhos, lembranças. Y júrame que no me mientes, porque te sientes idolatrada…