“Noche de ronda”

    Leni David

Agustin Lara e Maria Felix foram personagens que fizeram parte da minha vida, embora eu vivesse numa cidadezinha preguiçosa do interior. Sabia que eram mexicanos, artistas, e que se amavam. Também assisti aos filmes onde ela representava papéis de mulheres apaixonadas, traídas ou traidoras, sempre bela e misteriosa.

Nesse tempo – eu era menina – um dos meus tios assobiava a canção Maria Bonita, de Agustin Lara, que  era cantada pelo  trio Los Panchos e era muito  apreciada pelos jovens da época. Eu gostava de ouvir a melodia, cantando mentalmente os versos e associando-os à imagem de Maria Felix, a morena de cabelos longos e olhos negros; a Maria Bonita da canção e a Maria Felix que eu via no cinema, eram a mesma pessoa, e as suas imagens se superpunham embaladas pela música.

Contam que as vidas de Agustin Lara e Maria Felix eram alimentadas pela paixão e pelo ciúme. Ela era bela, a canção era bonita, mas não sei explicar porque me agradava tanto; apesar de tudo achava aquele amor perfeito, arrebatador e violento, tão grande e tão inacessível quanto eram os personagens que o viviam… Pidiendo que me quiserias, qui convertieras en realidades mis ilusioes…

Muito tempo depois recebi de um casal de amigos, como presente de Natal, um disco onde Caetano Veloso cantavacanções latinas antigas, inclusive, a Maria Bonita de Agustin Lara; senti uma sensação estranha, mistura de alegria e medo, gosto de saudade e reencontro, desejo de mergulhar no passado e de reviver cenas ternas de um tempo perdido. Não sei quantas vezes repeti a mesma faixa do disco, mas sei que foram muitas, pois perguntaram-me em casa se ele tinha um defeito.

Acuerdate de Acapulco, de aquellas noches Maria Bonita, Maria del alma… embora imóvel na poltrona da sala, o meu pensamento passeava, ao som da música, entre as acácias do quintal do meu avô… um vestido de fustão branco… tranças castanhas amarradas por laços de fitas… o assobio vadio do meu tio, bogaris espalhados no chão do fim da tarde, cheiro forte de jasmim, pinceladas sangrentas e douradas no poente e…. La luna que nos miraba… y cuando la vi escondida, me arrodillé para besarte… o arrepio, a sensação de coração crescendo, disparado, ofegante; confusão de medo e prazer, à aproximação da boca menina do primeiro namorado.

A canção passou então a fazer parte das minhas fugas; os pequenos prazeres, os momentos tristes ou solitários quando a chuva cai fina e repetitiva… a canção que me embala, o sabor doce do vinho do Porto, o calor no rosto, o ritmo sedutor, volteios de violinos, palavras latinas, palavras de amor… Muitas são às vezes em que escapo da realidade envolvida pela melodia de Maria, como se estivesse fazendo uma travessura de criança levada, cometendo o pecando original como mulher madura, praticando um ato proibido, roubando um momento de alguém, só pra mim!

Como num conto de fadas, certo dia li num livro de Aloísio de Oliveira, o relato de uma cena em casa de Agustin Lara e Maria Felix, “digna de ter sido filmada para a posteridade”: uma briga do casal, seguida de uma forte discussão. Maria subiu  correndo a escadaria em direção aos seus aposentos. Agustin, que mantinha em casa, à sua disposição, quatro violinistas que o acompanhavam ao piano, cantou-lhe uma “verdadeira serenata com frases de amor e perdão”. Ela então reapareceu, com um ar ainda mais dramático; ele vai até o jardim para colher uma rosa e os dois, entre lágrimas e beijos se abraçaram no meio da escada.

Lindo e ridículo! Vida e música confundidas, história de amor tragicômica, como a vida da gente…. Sentimento turbulento mesclado de brutalidade e ternura, capaz de deixar rastros no tempo… beleza, sonhos, lembranças. Y júrame que no me mientes, porque te sientes idolatrada…

 

7 pensou em ““Noche de ronda”

    • Pois saiba que eu também estou me achando com tantas visitas gentis e carinhosas. Em breve inauguro, certo?

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