Para começar a semana

 

 

Tempo

 

Adélia Prado

 A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

Libertação da poesia?

 

B Amigos e Grupo Hera

 

    Manifesto do Grupo Hera

 

“Não somos poetas de enredo – confiamos nas palavras.

As palavras: com sua carne e seu cerne, com suas roupas azuis e verdes e escarlates, com seus passos de dança no ar, sua mágica, máxima alvura, negror profundo.

Confiamos nas palavras que não dizem nada e nas que matam.

Porque somos eminentemente poetas, espécies de deuses, buscando domar o caos – o nosso e o vosso. As estrelas estão em paz onde estão.

Porque nossa matéria é o homem.

O homem no Universo, bem mais que entre seus pares: o homem consigo mesmo, a revolver-se, descobrir-se, odiar-se – o homem a perdoar-se e a apaziguar-se dos seus remorsos e iras.

Daí sermos terríveis, às vezes.

Duros, duríssimos, na nossa sede de compreender o próximo. De fazer aflorar a verdadeira alma das pessoas, suja de lama na maioria das vezes, mas a verdadeira.

E que fazer daqueles que temem defrontar-se consigo mesmo?

Já o dissemos, não?: não somos poetas de enredo.

A grande poesia, ao fim e ao cabo, não é acessível ao grande público – fato que, aliás, se dá independentemente da classe social, da formação mobralesca ou universitária, partido ou time a que se está filiado.

Perdoem-nos, pois, os tementes a si mesmos. E conservem-se nos seus cantos.

E, no entanto, como somos líricos!

Entre o que se convencionou chamar de Romantismo e o que ainda está por receber um nome: eis onde nos sentimos inseridos.

Precursores de um possível Século XXI, em que os verdadeiros poetas serão enfim saudados como os decifradores

dos mitos

esquecidos.

Os guias da Psique.

Profetas de nós mesmos, aguardamos solenemente as conclusões.

E contemplamos – atentem ao verbo: contemplamos – os boníssimos mistérios da natureza.

Não ao supérfluo.

Não ao mero artifício.

Não aos modismos.

Encomendamos nossa alma a Deus ou ao Diabo. Às multinacionais, nunca! Ah, os poetas do Rio e suas gloriazinhas de isopor –

Não aos padrões estéticos das metrópoles,

Não a essa arte que embevece “a todos”.

Abaixo esses conceitos que nos vendem a cada dia como se caracterizassem a literatura do nosso século.

Sobretudo nas universidades. sob a forma de teses para mestrado, manuais da mais pura literatura, etc e tal.

Mas tudo, tudo, tudo

Água passada. Estagnada. Estável.

Sossegada. Inofensiva. Marioswaldeana.

A poesia do próximo milênio abolirá todos os ismos.

E as Histórias da Literatura nem saberão mais onde encaixá-la.”

                                                                      Feira de Santana, setembro de 1982.

Assinado: Antonio Brasileiro, Roberval Pereyr, Juraci Dórea, Wilson Pereira, Rubens Alves Pereira, Washington Queiroz, Moacyr de Moura Freitas, Trazíbulo H. P. Casas, Elieser Cesar, Cremildo Souza, Fernando Hora, Pedro Carneiro, Antonio Gabriel E. de Souza, Marcos Pôrto.

Um poema de Manoel de Barros

 

O apanhador de desperdícios

                                               Manoel de Barros*

Uso a palavra para compor meus silêncios.

 Não gosto das palavras

 fatigadas de informar.

 Dou mais respeito

 às que vivem de barriga no chão

 tipo água pedra sapo.

 Entendo bem o sotaque das águas

 Dou respeito às coisas desimportantes

 e aos seres desimportantes.

 Prezo insetos mais que aviões.

 Prezo a velocidade

 das tartarugas mais que a dos mísseis.

 Tenho em mim um atraso de nascença.

 Eu fui aparelhado

 para gostar de passarinhos.

 Tenho abundância de ser feliz por isso.

 Meu quintal é maior do que o mundo.

 Sou um apanhador de desperdícios:

 Amo os restos

 como as boas moscas.

 Queria que a minha voz tivesse um formato

 de canto.

 Porque eu não sou da informática:

 eu sou da invencionática.

 Só uso a palavra para compor meus silêncios.

 

* Manoel de Barros nasceu em Cuiabá em 1916 e morreu em 13 de novembro de 2014. Ele estreou em 1937 com o livro “Poemas Concebidos sem Pecado”. Sua obra mais conhecida é o “Livro sobre Nada”, publicado em 1996.

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