Retratos de Mulheres – Resenha

 

                                           Por Socorro Pitombo*

Mulher, um tema recorrente, mas sempre muito instigante, revelador, inesgotável. Quanto mais nos debruçamos sobre o feminino, mais mulheres encontramos.  Extraordinárias, com trajetórias singulares. Algumas fortes, outras nem tanto, sofredoras, gloriosas ou detestáveis, mas interessantes. Muitas relegadas ao esquecimento.

Há séculos o ser humano se pergunta, e até hoje não há uma resposta clara, por que as sociedades ainda diferenciam tanto os dois sexos em termos de hierarquia e funções. Na realidade, apesar dos avanços e conquistas, a mulher ainda é discriminada em muitas situações. É o caso de perguntarmos: como se estabeleceram as hierarquias, como isso aconteceu e se sempre foi assim.

O filósofo alemão Friedrich Engels já sustentava que a sujeição da mulher começou com a família e a propriedade privada, quando os humanos se assentaram em povoados. Antes, na vida nômade, o homem caçava, protegia. A mulher paria, amamentava, criava. E essa assombrosa capacidade deve tê-la tornado muito poderosa. Talvez, quem sabe, a ânsia de controle dos homens tenha nascido desse medo. Do medo do poder inquestionável das mulheres.

Essas e outras questões estão contidas no livro “Histórias de Mulheres”, da espanhola Rosa Montero, considerada a escritora do momento. Rosa traça o perfil de quinze mulheres extraordinárias, que tiveram a coragem de se afastar das normas estabelecidas e de trazer à tona as mudas aflições de suas épocas.

A Fugitiva

Uma das biografadas é a escritora Agatha Christie, a “Rainha do Crime” como ficou conhecida pelos seus romances policiais. Apesar de famosa – seus livros foram lidos em todo o mundo – era perseguida por um monstro interior. Sua existência foi marcada por aflições, uma eterna fuga do negror, um combate secreto contra o caos.

Para ela, era importante que o mundo fosse ordenado, correto, tudo em seu devido lugar: o universo de sua infância.  Preocupava-se com a aparência, embora a sua própria não fosse das mais agradáveis. Aos 40 anos começou a engordar e transformou – se numa matrona, de seios fartos e quadris avantajados. Os dentes eram ruins e, por isso mesmo, nunca aparecia sorrindo nas fotografias.

Embora não seja mencionado em sua autobiografia, o desaparecimento da escritora provocou especulações de toda ordem.  À essa época já era famosa. Não é difícil imaginar o impacto que causou, desaparecer assim, misteriosamente, sem deixar nenhuma pista. Ao final de onze dias Agatha foi encontrada, bem instalada em um hotel.  Não se lembrava de nada. Tinha perdido completamente a memória, fugido de si mesma. Mais tarde, com ajuda psiquiátrica, foi reconstruindo as lembranças. Mas nunca se referiu a esse episódio.

Com Archie Christie, seu primeiro marido, viveu tempos de aventura. Durante um ano viajou com ele para dar a volta ao mundo. Agatha, que sempre procurou ser a esposa ideal, viu aos poucos a sua relação cair por terra. Archie se interessou por outra mulher e a separação foi inevitável. O que na época era impensável. Muito menos para ela, que gostava de tudo certinho, no seu devido lugar, mesmo que para isso tivesse que fingir para si mesma. Porque Agatha passou a vida ocultando coisas, dissimulando defeitos. Foi, sem dúvida, uma grande farsante, uma impostora, no bom sentido.

A esquecida

Jovem, inteligente, talentosa, escultora de gênio. Assim era Camile Claudel, outra mulher “fotografada” por Rosa Montero. Tinha tudo para triunfar, mas acabou sucumbindo, vítima das convenções e dos preconceitos da época. Francesa de Villeneuve começou a esculpir ainda criança, por conta própria. Aos 12 anos produziu um trabalho em argila que chamou a atenção dos artistas locais.

Chegou a Paris aos 19 anos, em 1881. Nessa época às mulheres era vedado o direito de estudar na Escola de Belas Artes.  Mas a destemida  Camile não se acovardou, se matriculou numa academia e alugou um estúdio com três jovens escultoras inglesas. As poucas moças que saíam das normas eram consideradas quase prostitutas. Conheceu Auguste Rodin, ele com 44 anos de idade e ela 19. Tinha plena consciência de que era genial e queria conquistar o mundo. Seu grande pecado foi ter-se apaixonado perdidamente pelo celebérrimo mestre. Casado há 20 anos, Rodin não abriu mão da estabilidade familiar e a aprendiz foi relegada a segundo plano, ao semiclandestino lugar de amante. Apaixonada e envolvida por um homem muito mais velho, admirado, cortejado, Camile se submeteu e pagou caro por isso. A sociedade não lhe perdoou.

São muitas as controvérsias sobre a vida tumultuada de Camile Claudel, sobretudo sobre a sua relação amorosa e profissional com Rodin. Trabalhava, apaixonada e incansavelmente, mas pouco assinou as suas obras. Também lhe serviu de modelo, ocupação que lhe consumia horas de dedicação e não se sabe ao certo se era remunerada.

Há quem diga que muitas obras assinadas por Rodin tenham sido esculpidas por Camile, pois trazem a marca do seu estilo: audacioso, inovador. Produziram muitos trabalhos em conjunto. Mas quem aparecia era o grande escultor, sempre festejado.  Embora igualmente genial, ela não teve o seu talento reconhecido. A sombra do mestre a esmagou.

Conservadoras, a imprensa e a sociedade não aceitavam suas esculturas arrojadas. Alguns críticos importantes chegaram a reconhecer a sua genialidade. Mas não o suficiente para consagrá-la como artista.   Enquanto isso, Rodin triunfava com obras mais transgressoras que as de Camile. Talvez inspiradas na criatividade e no talento da aluna dedicada. Afinal, não se sabe quem copiou quem. Mas não há dúvida de que ele a usou, tanto como mulher quanto como artista. Prova disso é que a década em que estiveram juntos foi a mais efervescente e produtiva para o escultor.

Camile rompeu com Rodin e a partir de então, em seu próprio estúdio, tentou manter-se a si mesma. As suas obras não vendiam, o que a levou progressivamente ao empobrecimento. Acabou desequilibrada. Tinha alucinações, mania de perseguição. Toda a sua revolta voltou-se contra Rodin.

No manicômio para onde foi levada, por ordem da própria mãe, não recebia visitas, exceto a do irmão Paul, que algumas raras vezes esteve  com ela. Na verdade, Camile foi punida pela família e pela sociedade por transgredir. Por tentar viver da sua arte e amar sem restrições, enfim, ser dona da sua própria vida. Não conseguiu. Apesar das suas comovedoras súplicas, permaneceu 30 anos internada. Morreu no manicômio de Montdevergues em 1943.

A autora

Rosa Montero é uma escritora ainda jovem, mas com uma obra madura. Nasceu em Madrid, em 1951. Frequentou a Faculdade de Filosofia e Letras e desde 1976 é colunista exclusiva do Jornal El País. A série de artigos reunidos no livro Histórias de Mulheres (2008) foi publicada oportunamente em El País Semanal e aparece numa versão ampliada, libertada da ditadura do espaço. É autora de diversos livros, dentre os quais Te trataré como a una reina (1983) e El Corazón Del Tártaro (2001, além dos já publicados no Brasil pela Ediouro: A Louca da Casa (2004), que recebeu o prêmio Grinzane Cavour de literatura estrangeira e o prêmio Qué Leer de melhor livro espanhol – Paixões (2005), História do Rei Transparente (2006) e A Filha do Canibal (2007), prêmio Primavera de melhor romance.

As biografadas

Agatha Christie – Camile Claudel – Frida Kahlo – Simone de Beauvoir – Charlotte, Emily, e Anne Brontë – George Sand – Margaret Mead,- Isabelle Eberhardt – Laura Riding- Maria Lejárraga – Alma Malher – Lady Ottoline Morrel – Zenóbia Camprubi-  Mary Wollstonecraft – Aurora e Hildegart Rodriguez.

* Socorro Pitombo é jornalista e colaboradora do Blog.