Receita de Martha Medeiros

 

Eu, modo de usar… 

 

Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir.

Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar.

Acordo pela manhã com ótimo humor mas … permita que eu escove os dentes primeiro.

Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza.

Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo esse tipo de herança de seus pais.

Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude.

Eu saio em conta, você não gastará muito comigo.

Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sozinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada.

(Então fique comigo quando eu chorar, combinado?).

Seja mais forte que eu e menos altruísta!

Não se vista tão bem… gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço.

Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pelos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar as vezes, mesmo na sua idade.

Leia, escolha seus próprios livros, releia-os.

Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate que isto é coisa de gente triste.

Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês mas, me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca …

Goste de música e de sexo, goste de um esporte não muito banal.

Não invente de querer muitos filhos, me carregar pra a missa, apresentar sua família…  isso a gente vê depois … se calhar …

Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora.

Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres, tenha amigos e digam muitas bobagens juntos.

Não me conte seus segredos … me faça massagem nas costas.

Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções.

Me rapte!

Se nada disso funcionar …

Experimente me amar !!!

Martha Medeiros

 

 

Matryoshka, Baboushka, Matriosca… Mãe, Mulher

 

 Para Mabel

Quando eu era menina, certo dia encontrei uma caixa diferente entre as coisas da minha tia. Ela era de madeira fina, dourada, e tinha a forma de um cubo de aproximadamente dez centímetros de lado. Abri e dentro dela encontrei outra caixinha, um pouco menor. Retirei-a do interior da primeira, abri a tampa e outra caixinha apareceu. A última era uma caixinha minúscula e dentro dela havia um papelzinho dobrado onde estava escrito: “você é a razão do meu viver”.

Não lembro quantas vezes realizei o gesto, mas sei que foram muitas caixas que abri, pois o canto onde realizei essa façanha ficou repleto das mesmas.

Confesso que esperava encontrar alguma coisa mais valiosa, como um broche, ou um anel. Aquele papelzinho me pareceu insignificante; dobrei direitinho e o acomodei dentro da caixa minúscula, um pouco frustrada;  comecei a fechá-las, uma por uma, para devolvê-las ao lugar onde as havia encontrado, mas as tampas não encaixavam corretamente, apesar do meu empenho. Não consegui, e para meu desespero fui surpreendida, repreendida severamente, chamada de enxerida, buliçosa e ainda levei uns tapas.

 

Muitos anos depois recebi um presente de uma amiga que havia chegado da então União soviética. Era uma Matryoshka, uma boneca típica, símbolo nacional e muito reputada como souvenir. A minha amiga explicou que dentro daquela bonequinha de madeira haviam outras iguais, mas de tamanhos menores, numa sequência que variava de cinco a oito e que se repetia em escala decrescente. Nessa época eu morava muito longe da minha terra natal e aquele presente me trouxe de volta à infância. Sorri, comecei a abrir as bonecas e o episódio das caixas da minha tia vieram à tona. Arrumei-as com muito carinho, enfileiradas, sobre a estante.

Guardo essas bonequinhas com muito carinho; primeiro, porque a amiga que me ofereceu o presente, Myriam, não se encontra mais entre nós. Faleceu, vítima de uma leucemia, aos vinte e sete anos de idade. Era uma pessoa muito querida,  e o seu desaparecimento provocou em mim uma dor enorme, além da saudade que perdura até hoje. Segundo, porque essas bonecas têm o dom de me apaziguar e de me encorajar, quando preciso. Gosto também de mostrar as minhas Matryoshkas às crianças que vêm à minha casa e como eu, no passado, com as caixinhas da minha tia, raramente elas conseguem encaixá-las e recompô-las para que se tornem personagem única.

 

Depois aprendi que essas bonecas surgiram na época do Império Russo, em 1890, quando instituiu-se a produção de brinquedos educativos e folclóricos. As primeiras Matryoshkas reproduziam as camponesas com seus trajes coloridos. Aprendi, também, que a primeira Matryoshka foi pintada por Serguei Malútin  para ser exposta na feira internacional de Paris, em 1900 – onde ganhou medalha de ouro por sua originalidade. Atualmente  ela se encontra no Museu do Brinquedo em Serguiev Posad. E a partir daí as Matryoshkas vêm sendo cultuadas como  símbolo nacional e objetos de desejo dos colecionadores.

Essas bonecas representam a família. A tradução literal do nome Matryoshka é “mãezinha” (mãe = mater; e oshka, o diminutivo). Também aprendi que apesar da importância dessas bonequinhas no artesanato russo, elas têm sua origem no Japão. Em 1890 um brinquedo que representava um sábio budista, foi trazido do Japão e presenteado à família Mamôntov, grandes patrocinadores das artes no virar do século. Usando o boneco japonês como modelo, o artesão Vassily Zvyôzdotchkin e o pintor Serguei Malútin criaram então a primeira Matryoshka russa, batizando-a  com uma variação do nome russo Matryona, que deriva de mat’ (mãe). Mostrada com grande sucesso no pavilhão do Império Russo na exposição internacional de 1900 em Paris, desde então as Matryoshkas são meio de vida para os artesãos e fazem a alegria de quem as recebe como presente.

Há pouco tempo descobri que a famosa Matryoshka, também é conhecida como Baboushka. Finalmente, também descobri que carregamos conosco muitas Matryoshcas. Temos uma aparência externa, a grande matriosca, a que todo mundo vê, e no interior, várias outras, parecidas, cada uma delas carregando consigo predicados e defeitos. São elas que nos fazem fortes, destemidas, ousadas, desaforadas, sábias, justas, ou inconsequentes. São elas também que vacilam, sofrem e choram. O importante, porém, é o renascer constante; é a sabedoria de olhar lá fora e descobrir saídas possíveis. E como diz Adélia Prado, “Mulher é desdobrável. Eu sou”.E temos várias camadas, digo eu, como as Matrioscas!

Leni David

 Observação: Publicado originalmente no “De tudo um pouco” em 25/08/2009