O direito ao sumiço (2)

 

Martha Medeiros

Em janeiro de 2008 publiquei uma crônica chamada “O direito ao sumiço”, onde eu falava sobre pessoas que viajam, mas são incentivadas a mandar notícias a todo instante, seja por e-mail, MSN, Skype ou o que for. Uma ansiedade que não havia antes: quando alguém embarcava pra longe, no máximo enviava uma carta, ou um cartão-postal, telefonava de vez em quando, mas ainda conseguia se sentir livre e sozinho, distante de todos e mais próximo de si mesmo. Hoje, com toda a parafernália tecnológica à disposição, você não consegue desaparecer: é facilmente acessado, esteja no continente que estiver. Vantagem para quem ficou e sente saudade, mas o viajante que não se desconecta perde uma rara oportunidade de levar a cabo a frase que tantas vezes é dita quando estamos sobrecarregados: “Que vontade de dar uma sumida”.

Isso me veio à mente quando li as notícias sobre esse estranho caso da France Telecom. No espaço de um ano e meio, 24 funcionários da empresa se suicidaram, sem contar os 13 que tentaram se matar e não obtiveram sucesso – acho que sucesso não é a palavra mais adequada pra situação, mas enfim. Eu não conheço os pormenores do assunto, mas me chamou a atenção o fato de a morte desses funcionários estar vinculada às condições de trabalho: todos se sentiam demasiadamente pressionados. Até aí, não vejo justificativa pra dar fim à vida, a pressão faz parte do meio corporativo em qualquer lugar do planeta, mas há um ponto que merece ponderação: a avalanche de mensagens que lotavam seus computadores e blackberry foi relacionada ao profundo estresse que os acometia. Faz sentido. Algumas pessoas não conseguem mais distinguir o que é vida pessoal e o que é vida profissional. Estão permanentemente conectadas com os outros, a ponto de perder a conexão consigo próprias.

O blackberry, por exemplo (eu sei que ele já está obsoleto, mas eu também estou, conformem-se), me parece infernal: sei de gente que acorda de madrugada para checar e-mails, numa atitude totalmente compulsiva e insana. As pessoas se sentem agoniadas quando ficam fora de alcance. É como se o isolamento, o silêncio e a privacidade expatriassem a criatura, a impedissem de estar em meio aos acontecimentos. É uma inversão total de percepção: só nos sentimos vivos quando acionados pelos que estão de fora. Parece até que dentro de nós não acontece nada, não há nenhuma novidade a descobrir.

Óbvio que deve haver outros motivos  para a onda de suicídios dos funcionários da France Telecom, mas esse vício de ficar conectado 24 horas, seja por mania ou por exigência profissional, merece uma reflexão. Não podemos perder nosso direito ao sumiço, de dar aquela escapada saudável, que pode acontecer tanto numa viagem como aqui, no dia a dia, bastando pra isso não acessar a internet, desligar o celular e curtir a tão necessária companhia de si mesmo. Do contrário, vão pipocar mais casos de gente que surta e acaba saltando da ponte como única alternativa de dar uma sumida.

Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 16117,   7/10/2009.

Leitura para o fim de semana: Martha Medeiros

 

Martha Medeiros

 

Você conhece um chato. Ou dois. Ou meia-dúzia. E até gosta deles, viraram figuras folclóricas na sua vida. Talvez seja um cunhado, um amigo de um amigo, um colega de trabalho. Os chatos são bem-intencionados, não se pode negar. E é justamente essa boa intenção fora da medida que faz deles… chatos. O chato nada mais é que um exagerado. Ele é prestativo demais, ele é piadista demais, ele leva muito tempo para contar algo que lhe aconteceu, ele fica hooooras no telefone, ele se leva a sério além do razoável, ele ocupa o tempo dos outros com histórias que não são interessantes. O chato é, basicamente, um cara (ou uma mulher) sem timing.

Estava pensando nisso quando escutei alguém citando uma das coisas mais chatas que existe. Tive que concordar: colocar um filho pequeno no telefone pra falar com a dinda, com a vovó, com o titio, é muito chato. A gente ama aquela criança – talvez seja até o nosso filho! – mas ao telefone, esquece. Tentamos entabular um diálogo minimamente inteligível e nada rola. Ou ele não fala nada que se compreenda, ou não abre o bico, e só nos resta ficar idiotizados do outro lado da linha.

Todo mundo sabe que isso é chato. Mas todo mundo que já teve um filho comete essa mesma chatice com os outros. Por quê? Porque pai e mãe de primeira viagem são chatos por natureza. Ninguém escapa. Se não for chato, será considerado um sem-coração. Todos irão apontar: olha lá, aquele ali esconde o filho. Põe ele no telefone!

Outra chatice é mostrar 3.487 fotos do bebê. Dá nos nervos quando o filho não é nosso. Todos os bebês são iguais, menos para seus pais. Seja bem sincero: dá pra aguentar ver foto de bebê pelo celular? Basta perguntar educadamente pra alguém: e seu filhinho, vai bem? Pronto. Num segundo o celular ou iPhone será sacado e apontado direto para seus olhos: veja você mesmo.

A gente sabe que é chato, mas toleramos com sorrisos parcialmente sinceros porque faremos a mesma coisa quando chegar a nossa vez – ou já fizemos um dia. Se você passou dessa fase, segure a onda e compreenda os que ainda não passaram. Nada de reclamar. Aqui se faz, aqui se paga.

Outras chatices? Quando alguém pergunta: lembra de mim? Se está perguntando, é porque a chance é remota. Mas já não fizemos isso diante de alguém que gostaríamos muuuuito que lembrasse? E esticar as letras das palavras quando se está escrevendo? E quando a gente começa uma frase com “adivinha”. Adivinha pra onde eu vou nas próximas férias. Adivinha quem me convidou pra jantar. Adivinha com quem eu sonhei hoje.

Falando em sonho, tem coisa mais chata do que ouvir o sonho dos outros? Mas você já contou os seus. Váááárias vezes.

Agora adivinha qual o próximo exemplo que vou dar (rsrs). Precisamos mesmo colocar risadas entre parênteses para que os outros entendam nossas piadinhas cretinas?

Alguns menos, outros mais, chatos somos todos.

 

Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 16184, 13/12/2

 

…Oito, nove, dez. Lá vou eu!

 

“Todo ser humano, por mais adulto que seja, não adianta: traz sempre dentro de si uma criança.”

Martha Medeiros

 Estava caminhando num parque quando vi um homem encostado de lado numa árvore, inerte, quase sem respirar. Que coisa estranha, um marmanjo encolhido junto a um tronco. Não sendo um maluco, só podia ser alguém se escondendo. E logo descobri de quem. Ele estava se escondendo de três adoráveis salsichas. Estou falando daquela raça de cachorro, daschhund, e não de embutidos. Os três cachorrinhos estavam paranóicos  atrás do dono, au, au, au, onde ele está, onde nosso dono se meteu?

Achooou!

Ficaram todos abanando o rabo, felizes e aliviados, inclusive o dono. Na hora me lembrei de como é bom brincar de esconde-esconde. É um ensaio prático sobre o poder da presença. Você some de vista e ficam todos te procurando: é ou não é uma sensação incrível? Mais tarde você treina isso com namorados e namoradas: fica um dia sem ligar e o mundo desaba. Onde você estava, por que não retornou minhas ligações? E você: ahn, hum, é que fiquei sem bateria no celular. Uau, quanta aflição e quanta saudade você provocou. Mesmo manjada, a estratégia ainda funciona.

Mas e quando não funciona?

Lembro de uma vez, no auge da infância, em que me escondi tão bem, mas tão bem, que ninguém me achou. Pior: pararam de me procurar. Foram tomar um lanche, ver televisão. E eu ali, encolhida atrás de um arbusto, ou enclausurada num sótão, ou espremida atrás de uma porta (já nem lembro onde eu estava), só sei que desistiram de brincar e ninguém vinha me salvar da solidão. Tem coisa mais frustrante do que você ter que sair do seu esconderijo e se entregar para quem não tem mais nenhum interesse em lhe encontrar?

Aquele homem atrás da árvore devia ter uns 55 anos. Ou mais. Ou menos: entre os 30 e os 60, todos hoje têm a mesma cara. Enfim, ele não era nenhum garoto. Mas sabia da importância de ser procurado. De ter sua ausência sentida, de testar sua ascendência perante os outros, de provar para si mesmo que é imprescindível, que sua existência não é indiferente aos demais, que ele pode se sentir um pequeno deus por alguns míseros minutos, que é capaz de fazer com que alguém se descabele diante da impossibilidade de revê-lo, ou seja (e usando de menos dramatismo): aquele homem conhecia o prazer indescritível que é ver alguém sentindo sua falta. Se for alguém do sexo oposto, prazer triplicado. Mas vale para qualquer alguém: um amigo, um parente, um ex-sócio, um parceiro de cela. Até mesmo três cãezinhos salsicha.

Era um homem bem-posto na vida, talvez um empresário, um profissional liberal, um homem com responsabilidades, que declara imposto de renda, que usa gravata nos dias úteis, que esmurra a mesa quando alterado. Pois estava ele ali, numa manhã de sábado, escondidinho atrás de uma árvore num parque público, provando que todo ser humano, por mais adulto que seja, não adianta: traz sempre dentro de si uma criança.

Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 15756, 12/10/2008.

 

DOIDA OU SANTA?

                                                         Martha Medeiros

“Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa”.

São versos de Adélia Prado, retirados do poema A Serenata. Narra a inquietude de uma mulher que imagina que mais cedo ou mais tarde um homem virá arrebatá-la, logo ela que está envelhecendo e está tomada pela indecisão – não sabe como receber  um novo amor não dispondo mais de juventude. E encerra:  “De que modo vou abrir a janela, se não for doida? Como a fecharei, se não for santa?”

Adélia é uma poeta danada de boa. E perspicaz. Como pode uma mulher  buscar  uma  definição exata para si mesma, estando em plena meia-idade, depois de já ter trilhado uma longa estrada onde encontrou alegrias e desilusões,  e  tendo  ainda  mais  estrada  pela frente?  Se ela tiver coragem de passar por mais alegrias e desilusões – e a gente sabe como as desilusões devastam – terá que ser meio doida. Se preferir  se abster de emoções fortes e  apaziguar  seu  coração, então a santidade é a opção. Eu nem preciso dizer o que penso sobre isso, preciso?

Mas vamos lá. Pra começo de conversa, não acredito que haja uma única mulher no mundo que seja santa.. Os marmanjos devem estar de cabelo em pé: como assim, e a minha mãe??? Nem ela, caríssimos, nem ela.

Existe mulher cansada, que é outra coisa. Ela deu  tanto  azar  em suas relações que desanimou. Ela ficou tão sem dinheiro de uns tempos pra cá que deixou de ter vaidade. Ela perdeu tanto a fé em dias melhores  que  passou  a  se  contentar  com  dias  medíocres. Guardou sua loucura em alguma gaveta e nem lembra mais.

Santa mesmo, só Nossa Senhora, mas cá entre nós, não é uma doideira o modo como ela engravidou? (não se escandalize, não me mande e-mails, estou brin-can-do).

Toda mulher é doida. Impossível não ser. A gente nasce com um dispositivo interno que nos informa desde cedo que, sem amor, a vida não vale a pena ser vivida, e dá-lhe usar nosso poder de sedução para encontrar ‘the big one’, aquele que será inteligente, másculo, se importará com nossos sentimentos e não nos deixará na mão jamais. Uma tarefa que dá para ocupar  uma vida, não é mesmo? Mas, além disso,temos que ser independentes, bonitas, ter filhos e fingir de vez em quando que somos santas, ajuizadas, responsáveis, e que nunca, mas nunca,   pensaremos  em jogar tudo pro alto e embarcar num navio-pirata comandado  pelo  Johnny  Depp, ou então virar uma cafetina, sei lá, diga aí uma fantasia secreta, sua imaginação deve ser melhor que a minha.

Eu só conheço mulher louca. Pense em qualquer uma que você conhece e me diga se ela não tem ao menos três dessas qualificações: exagerada,dramática, verborrágica, maníaca, fantasiosa, apaixonada, delirante.Pois então. Também é louca. E fascina a todos.

Todas as mulheres estão dispostas a abrir a janela, não importa a  idade  que   tenham. Nossa insanidade tem nome: chama-se Vontade de Viver até a Última Gota. Só as cansadas é que se recusam a levantar da cadeira para ver quem está chamando lá fora. E santa, fica combinado, não existe. Uma mulher que só reze, que tenha desistido dos prazeres da inquietude, que não deseja mais nada? Você vai concordar comigo: só sendo louca de pedra.                   

 A SERENATA

                 Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
– só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?