Lagartixa
Sinto nojo e medo de lagartixas domésticas, acabei odiando o pobre bicho. Outro dia vi um menino brincar com uma, das menores, por sinal, e estremeci como se a criança estivesse a cutucar um violento jacaré.
Meu apartamento vinha sendo a residência de três enormes lagartixinhas. Noites mal dormidas. Pensei: preciso matá-las para livrar-me do receio de que me caiam na cara durante o sono.
Ontem liquidei duas.
A primeira foi mais fácil. Para começar, fitei-a longamente, como a convencer-me de minha superioridade física e moral. Armado de um cabo de vassoura, aproximei-me cauteloso, enquanto ele me olhava, a duvidar de minhas reais intenções. Não é possível – concluí – que este sujeito vai me dar, a mim que nada lhe fiz, uma cacetada. Como eu continuasse avançando recuou um pouco, mas, pejando-se da covardia, tornou a refletir que eu não teria motivos para maltratá-la.
Seu nobre raciocínio custou-lhe o rabo, o rabo porque, no desconcerto da emoção, o golpe desviou-se alguns centímetros do alvo. Enquanto o rabo – momento puro de misterioso pavor – estertorava-se no chão, a bichinha esgueirou-se pela parede, ocultando-se atrás de um móvel. Os saltos do rabo solitário me acabrunhavam. Senti meu valor desfalecer. Agora, no entanto, o problema era outro; tratava-se, piedosamente, de livrar a lagartixa daquele rabo inquieto, ou seja, destruir a lagartixa aleijada. De que vale uma lagartixa sem rabo? De que vale um rabo sem lagartixa. Afastei o móvel, tive a impressão triunfante de que ela fremia de horror.
Desferi o segundo golpe com tal confusão de sentimentos que a infeliz ficou descadeirada. Tonta, sem noção do perigo, começou a arrastar-se penosamente pelo rodapé, desgraciosa e lenta. Com a terceira bordoada, estrebuchou de barriga para cima. É cadáver, respirei.
Coisa nenhuma. Ao remover o corpo, fui surpreendido por um pulo que a colocou de novo, toda estragada, na posição normal. Veio-me um frio ruim à espinha. Tive vontade de sair, dar uma volta pela praia, tomar um conhaque. A essa altura, entretanto, já não podia permitir a mim mesmo fraquezas dessa espécie. O tiro de misericórdia (ai de mim) teria liquidado um gambá.
O assassinato da segunda, (a verificação chocou-me bastante) foi incomparavelmente mais fácil. Menos emocionado, já meio habituado ao crime, desferi apenas dois golpes furiosos e fatais.
Joguei os corpos no lixo, e estava a escrever isto, quando alguém, lendo por cima do meu ombro, corrigiu a minha ignorância em dois pontos: primeiro que lagartixa dá sorte; segundo, que, decepado o rabo de uma lagartixa, cresce-lhe outro. Assim sendo, quanto ao rabo retifico logo: uma lagartixa sem rabo, a longo prazo, vale uma lagartixa inteira. No tocante à sorte, quero dizer que o extermínio das duas inocentes parece que me ajudou muito a libertar-me do medo. A terceira lagartixa, ausente na hora da matança, pode ficar agradecida ao sacrifício de suas irmãs. E se ela me der sorte, eu lhe pouparei a vida.
Paulo Mendes Campos
Paulo Mendes Campos (*1922 – + 1991)- Nasceu em Belo Horizonte, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de D. Maria José de Lima Campos. Ainda jovem ingressou na vida literária, como integrante da geração mineira a que pertence Fernando Sabino e outros. Em 1945 foi ao Rio de Janeiro, para conhecer o poeta Pablo Neruda, e por lá ficou. No Rio já se encontravam seus melhores amigos de Minas — Sabino, Otto, e Hélio Pellegrino. Passou a colaborar em O Jornal, Correio da Manhã (de qual foi redator durante dois anos e meio) e Diário Carioca. Neste último, assinava a “Semana Literária” e, depois, a crônica diária “Primeiro Plano”. Foi, durante muitos anos, um dos três cronistas efetivos da revista Manchete. Em 1951 lançou seu primeiro livro, “A palavra escrita” (poemas).
Foi tradutor de poesia e prosa inglesa e francesa e traduziu, dentre outros, Júlio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin, Shakespeare, além de Neruda, tendo enriquecido sua experiência humana em viagens à Europa e à Ásia. Publicou mais de duas dezenas de livros, entre eles: A Palavra Escrita, poesia, Ed. Hipocampo – Rio de Janeiro, 1951; O Cego de Ipanema, crônicas, Ed. do Autor – Rio de Janeiro, 1960;Hora do Recreio, crônicas, Editora Sabiá- Rio de Janeiro, 1967;O Anjo Bêbado, crônicas, Ed. Sabiá – Rio de Janeiro, 1969; O Amor Acaba – Crônicas Líricas e Existenciais – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999; Cisne de Feltro – Crônicas Autobiográficas – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000; Alhos e Bugalhos – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000; Brasil brasileiro — Crônicas do país, das cidades e do povo – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000; O gol é necessário — Crônicas esportivas – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000.