POEMETO
Não há o que temer
nem aplaudir.
O que somos é só esse fremir.
Parte de mim é bela
parte é aquela
vontade de fugir
(Antônio Brasileiro)
Não há o que temer
nem aplaudir.
O que somos é só esse fremir.
Parte de mim é bela
parte é aquela
vontade de fugir
(Antônio Brasileiro)
Numa manhã de maio de 2006 depois de ministrar três horas de aula entrei na sala dos professores para tomar um cafezinho e descansar alguns instantes. Sentados à mesa estavam Roberval Pereyr e Irma Caribé, ele colega da faculdade, ela pessoa muito amiga da família. Ao sentar-me fui surpreendida pela proposta de Roberval:
– Leni, Irma vai lançar um novo livro de poemas; você poderia fazer a apresentação…
Fiquei encabulada, pois não me sentia preparada para escrever a apresentação de um livro. Argumentei e até sugeri nomes de outras pessoas que poderiam cumprir a tarefa com propriedade. Não adiantou. Levei uma cópia do livro para casa e à noite, após a leitura de alguns poemas, escrevi a apresentação motivada apenas pelo conteúdo do que li, impregnada que fiquei daquela poesia viva, dura e terna ao mesmo tempo:
Como falar de poesia sem pedir conselho a um mestre? Em A rosa do povo Drummond advertia sabiamente: não se deve adular o poema; deve-se chegar bem perto, contemplar as palavras, consciente de que cada uma delas tem mil faces secretas sob a face neutra.
Mas onde encontrar a chave que nos conduz ao universo das formas poéticas? O segredo desvendou-se à luz de Noite Clara,de Irmã Caribe Amorim e conduziu-me por caminhos impregnados de fragmentos de vida, flagrantes de sonhos, dores…
Irma é Poeta, artista da palavra. Sua poesia, nua, explode permeada de nuanças,
revela-se em versos fortes:
E no silêncio injusto da aldeia, ruíram todos os erros. Todos.
Ou em versos ternos, plenos de lirismo, como em Crepúsculo:
O vento esfriava meu rosto. / Nada se ouvia além do mar / batendo contra si mesmo.
Ou simplesmente em versos breves como um gesto:
No inverno do ocaso / me pressinto.
Sua escrita tem força, flui como fonte cristalina, mas também machuca, devagar,como pedregulhos na areia. Vale a pena penetrar em Noite Clara para percorrer veredas enluaradas ou floridas; sótãos abandonados ou recantos perdidos, de mãos dadas com a poesia, sem compromisso com as convenções.
(Leni David)
Para que possamos voar, esparramar beleza e ternura por aí, em Noites Claras, ou em dias ensolarados.
RICTUS II
Nada mudaria.
queria apenas viver
o outro lado da lua
e as coisas simples
do dia-a-dia
(Noites Claras, p.15)
POEMA TÁCITO
Chorei as dores do pássaro errante.
Ferida tombei.
Entre medo e heresias
brinquei com deuses.
e me afoguei no aconchego
De noites frias.
(Noites Claras, p. 18)
ALEGORIA
Viajavam os ventos
ao infinito
Somente um barco
vagava
na tarde fria
de saudades rendilhadas
o sol em lágrimas últimas
beijou da noite
a face enluarada,
(Noite Clara, p.25)
RUPTURA
…e rasgando a ventania
(leveza e fúria)
nada mais é preciso mulher
que arriar as velas
ocupar a gávea
soltar os cabelos
suspirar profundo
olhar ao longe
nada dizer…
permitir apenas
que seus olhos digam…
(Um solto no outro, p. 70)
Irma Rosa de Lima Caribé Amorim – Nasceu em Feira de Santana, cidade onde vive. Odontóloga e educadora, Irma dirigiu o Centro de Cultura Amélio Amorim e atualmente é vice-presidente da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana e membro da Academia de Cultura da Bahia. Publicou Um solto no outro (2003), em parceria com os poetas Cardan Dantas e Paulo Pedro Pepeu. Em 2005 publicou Noite Clara e em 2006, Avenida Senhor dos Passos. Tem poemas publicados nas revistas Hera e Arquitextos. Irma Rosa vive o dia-a-dia da cultura baiana.
CONTEMPLAÇÃO DA NUVEM
Antônio Brasileiro
p/ Beto
A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem
passando.
E uma nuvem passando
ensina-nos mais coisas que cem pássaros
mil livros um milhão de homens.
A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem.
Passando.
Cecília Meireles
Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados aos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras.
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas,
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
e há mãos de púlpito e altares,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;
e pensam de mil maneiras;
mas citam Vergílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesas.
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
“Escreva-me aquela letra
do versinho de Vergílio…”
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
“Tenha meus dedos cortados
antes que tal verso escrevam…”
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).
Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
“Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?”
(Antiguidades de Nimes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade – essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.
Fragmento extraído do livro “Romanceiro da Inconfidência“, Editora Letras e Artes – Rio de Janeiro, 1965, pág. 70.
“O homem que se entrega inteiro ao silêncio
nunca se doa inteiro
em palavras.
Eterno peregrino em seu próprio silêncio”
******
“L’homme qui s’adonne tout entier au
silence ne se donne jamais tout entier
en paroles
Éternel voyageur en son propre silence”
Michel Camus. Proverbes du silence et de l’émerveillement. (Collection Terre de Poésie, Editions Lettres Vives) P.41.