Uma crônica de Hilda Hilst

A crônica que publico abaixo foi escrita por Hilda Hilst em 1959, ou seja, há 52 anos. Gosto muito dela e esse gostar tem algumas razões; gosto, em primeiro lugar, pela irreverência que ela aparenta; segundo, porque ela me diverte, como se abrisse um espaço para escapadas nada convencionais. Hilda Hilst, na realidade, em vez de citar explicitamente os anseios, revoltas e desejos que cada um guarda dentro de si, muitas vezes de maneira velada, ela os explicita de forma divertida, como se fossem sonhos de um personagem não muito equilibrado e que usa uma linguagem coloquial bem próxima do que estamos acostumados a ouvir em nosso cotidiano.

Quem não gostaria de fazer (ou receber) o carinho de um cafuné, de sonhar com viagens e coisas que parecem sonhos quase incessíveis a pessoas comuns? Quem não gostaria de sonhar com um Brasil que deu certo, um Brasil solidário e justo?

Melhor ainda, quem não gostaria de sonhar com dias de paz, “asas e barcos”, envolvidos pela “poesia que viceja e grassa como grama”, aconchegados num ninho de poesia e de amor? Diante da impossibilidade, a autora sugere brincar de autista, como aquele que se ausenta do mundo e de tudo que se passa ao seu redor… Para brincar de ilha: só, embora rodeada de gente por todos os lados.

Tô Só


Hilda Hilst

Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica  quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá e teta de azul
de berimbau de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar… Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro? Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave
ave
moinho
e tudo mais serei
para que seja leve
meu passo
em vosso caminho.*
Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.

Crônica escrita por Hilda Hilst para o “Correio Popular” de Campinas-SP
* Trovas de muito amor para um amado senhor – SP: Anhambi, 1959.