Dá para sonhar

 

Danuza Leão

 Foi dada a largada para as festas, e de todos os lados se ouve o mesmo refrão: “ah, mas que chatice, odeio Natal, estou louca/o para chegar logo janeiro e tudo isso  acabar”.

Alguns já compraram passagem, estão viajando uma semana antes, para disfarçar que estão fugindo, e só voltam em 2012 -e é por isso que não se encontra mais lugar em nenhum avião para nenhum destino.

Já passei noites de Natal em casa de amigos, e elas são, sempre, rigorosamente iguais: as mesmas comidas, o mesmo troca-troca de presentes, as luzinhas da árvore piscando, piscando, as mesmas pessoas de todos os anos repetindo o mesmo texto – Feliz Natal-, mas ficando pouco tempo, pois tinham pela frente outras festas  espalhadas pela cidade, da sogra do irmão, da mãe do futuro genro etc., nessa loucura que são hoje as novas famílias.

Mas ouço falar que existem os que curtem de verdade; não sei se pelo lado religioso -será ?- ou pelo lado familiar.

Há os que cruzam os oceanos para poderem estar todos juntos e unidos nessa noite, e para esses o Natal começa em setembro, outubro. É quando combinam em casa de quem vai ser a ceia, quem leva o que, e começam as compras: presentes, papéis de embrulho, laços de fita, e os enfeites, os famosos enfeites da árvore, que a cada ano deve surpreender por ser maior e mais bonita que a do anterior. E o Papai Noel?

Sempre haverá um herói na família para, num calor absurdo, se vestir de bom velhinho, com direito a peruca, gorro, barba e bigode. Onde se compra a roupa de Papai Noel? Mistério.
E será que alguma criança ainda acredita em Papai Noel? Outro mistério.

Mas as datas têm um peso, e os que não têm família -ou acham que o Natal não tem nenhuma importância, é um dia como qualquer outro -, estão sujeitos a uma certa melancolia (e alguém encontra um analista dia 24 de dezembro?).

Esses ligam a televisão e olham para o relógio a cada dez minutos, para ver se já está na hora de poder tomar um tranquilizante, dormir, e só acordar no dia 25 com um ufa!, já passou.

Mas ainda tem o 31.

Nessa noite é obrigatório ser feliz, e ai de quem estiver só, curtindo um amor que se foi ou lembrando das tristezas do ano que passou. E quanto mais alegres estiverem as pessoas, mais fogos forem estourados para festejar 2012, mais sós e tristes vão se sentir.

Não adianta o discurso de que é um dia como qualquer outro, porque não é; a pressão é grande, dela poucos escapam.

E é inútil tentar brigar com o mundo; ainda é tempo de se organizar, combinar com amigos, aqueles que estarão tão sós quanto você, e combinar de passarem juntos a famosa data. Para isso, o ideal seria ter um bom ar condicionado, alguma bebida, muito gelo, e -por que não?- uma travessa de rabanadas, mas com a firme intenção de achar tudo normal.

É claro que à meia-noite vão haver muitos beijos e abraços, muitos votos de feliz ano novo, mas é rápido, pronto, acabou. E atenção: beba com moderação, pois as  ressacas do primeiro dia do ano costumam ser colossais e podem ser confundidas com depressão; aliás, alguém já viu uma ressaca feliz?

No fundo, bem lá no fundo, dá uma inveja danada dos que acreditam e festejam o Natal e o Ano Novo a sério; estas devem ser as pessoas mais felizes do mundo, mas por que não tentar entrar no clima e pensar que o novo ano vai ser maravilhoso e que vamos ser felizes para sempre?

Afinal, sonhar não custa.

Fonte: Folha/Uol – Colunistas

Observação: Colaboração enviada por Francisco Cezar. Muito obrigada, amigo!

Ah Paris, Paris…

Imaginou-se nos cafés de paris

lançando uma nova poética

e um baião enciumado ecoou longe.”

                           (Iderval Miranda)

Ignácio de Loyola Brandão, em artigo recente – “Dividindo o quarto com Garcia Marquez”, que me foi recomendado por Juraci Dórea, conta a sua experiência como hóspede do Hôtel des 3 Collèges localizado no coração do Quartier Latin, exatamente no número 16 da rue Cujas, um hotelzinho duas estrelas muito simples, mas simpático e limpo.

Nunca me hospedei nesse hotel, mas posso afirmar que ele é muito bem localizado. Vizinho à Sorbonne, pertíssimo do Panthéon, a dois passos do Jardim de Luxembourg e do Museu de Cluny, dedicado à Idade Média. Também fica muito próximo do famoso restaurante Polidor, que funciona desde 1845, serve o melhor Boeuf Bouguignon e a melhor Tarte Tatin de Paris, por um preço tentador e que recentemente foi cenário do filme Meia Noite em Paris. Para quem gosta de andar é muito fácil chegar, andando, até o Museu d’Orsay, ao Louvre, à Notre Dame, à Sainte Chapelle e a dezenas de outros monumentos reputados da capital.

Conheço bem o quartier. Próximo ao Boulevard Saint Michel, sempre animado e dotado de um comércio variado: livrarias, lojas de souvenirs, butiques, bons cafés e uma profusão de pequenos restaurantes que servem comida francesa, grega, espanhola, italiana, vietnamita, etc., por preços accessíveis. É evidente que o local não é recomendado para quem quer experimentar a comida dos grandes chefes da cozinha francesa.

No seu artigo, Ignácio de Loyola Brandão relata entusiasmado que ficou sabendo através de uma plaquinha de bronze na porta daquele imóvel, que naquele hotel, em 1957, Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de literatura, escreveu o romance “Ninguém Escreve ao Coronel”, o terceiro da sua carreira; feliz, ele descobre ainda, que o quarto que ocupavam – ele, a filha e uma amiga – era o mesmo que no passado fora ocupado pelo escritor. E constatou que o escritor húngaro Miklós Radnoti, um dos mais queridos pelos seus compatriotas, morou no Trois Collèges no final dos anos 1930 e que o poeta Raoul Ponchon viveu ali entre 1911 e 1937. Loyola esqueceu de citar, porém, que na mesma rua, quase em frente ao hotel em questão, encontra-se um outro, também muito famoso por ter abrigado nos anos 1940 o escritor Jorge Amado. Trata-se do Grand Hotel Saint Michel.

Na realidade, as placas nas entradas dos imóveis em Paris são comuns e contam histórias que só são percebidas por pessoas disponíveis, que por acaso ou por querer, descobrem fragmentos da história de pessoas que fugiram da rotina, pessoas que deixaram os seus nomes gravados para a posteridade. Não é preciso muito esforço para descobrir que um escritor, um inventor, um ator ou um revolucionário viveu ali. Há também as placas que homenageiam os “Heróis da Pátria”, locais onde pessoas perderam a vida em defesa de uma causa ou de um ideal, como os militantes da Resistência francesa. Há pouco tempo descobri o imóvel onde viveu Santos Dumont e confesso que fiquei feliz com o achado; a placa informava que ali, em 1903, ele havia estacionado o seu dirigível número 9; a antiga residência do aviador brasileiro fica no número 41 da avenida dos Champs Elysées.

Após a indicação do artigo por meu amigo, a internet me levou ao texto que comentei acima e, casualmente, a outro artigo de Ignácio de Loyola Brandão: “Sabendo francês podemos ser mais felizes”. Ele inicia a sua escrita afirmando que não é esnobe e assegura que para desfrutar Paris, a Provence e outros locais reputados, “sabendo francês, os prazeres multiplicam-se por cem, o desfrute por duzentos, a alegria por quinhentos. Mesmo que você tenha ido apenas para fazer compras, como a maioria dos brasileiros”…

Na sequência ele questiona alguns aspectos da vida moderna, entre eles o estudo de idiomas, e confere que nos dias atuais aprendemos apenas aqueles que o mercado chama de línguas úteis, como o inglês, o japonês e o mandarim. Loyola critica a eliminação de algumas línguas, que no passado eram estudadas no ginásio, como o francês, o latim e o espanhol, que ele próprio estudou e que considera importantes na sua formação. Lembra com carinho de uma antiga professora de francês, Donna Fanny, da época em que estudava em Araraquara e o quanto fora importante ler autores clássicos da literatura francesa, no original. Mas a crítica se torna mais severa quando comenta a maneira como são feitas reformas e mudanças no sistema educacional brasileiro, argumentando que, se isso fosse importante, o ensino atual deveria ser extinto, haja vista que ele não leva a lugar nenhum da maneira em que está estruturado. E ele continua: “Há na nossa vida algo que é preciso preencher. Uma necessidade interior de espírito, contemplação do mundo, da vida, avaliação das coisas. Encarar a existência como algo que precisa de alimento”.

Mas, como uma coisa puxa outra, alguns dias depois encontrei o artigo “Capital linguístico”, da jornalista Carolina Nogueira, que morou (estudou) em Paris durante quatro anos e que está de volta ao Brasil. Carolina tem um blog, Le Croissant, e também colabora com o blog do Noblat. Nesse artigo ela comenta a crônica de Ignácio de Loyola Brandão e tece considerações pertinentes a respeito de ser mais feliz por falar francês; lembra que o próprio autor chama a atenção sobre a polêmica que o seu texto pode provocar, quando pede para não ser tomado por esnobe, mas garante que não tem jeito; sempre haverá quem pense assim. E adverte que ela própria é taxada de “deslumbrada” nos comentários que recebe na sua coluna, Cartas de Paris.

Carolina faz um balanço da sua estadia na França, às vésperas de deixar Paris, e repertoria coisas que trará na bagagem: alguns novos melhores amigos. Dois novos diplomas. O seu amor pelo desenho recuperado e colocado em lugar de destaque em sua vida. Muitos livros. Mas, sobretudo, um idioma a mais. Um idioma que lhe abriu as portas para todos os outros itens da lista.

A constatação de que Paris volta com ela para o Brasil, graças ao “capital linguístico” é explicitada através das conquistas, da experiência do vivido, da maneira como enfrentou situações boas e ruins. Acompanho as “Cartas de Paris” há muito tempo e alguns questionamentos levantados por Carolina Nogueira nesse texto e em outros publicados anteriormente, também já me ocorreram.

Assim como ela, já fui chamada de deslumbrada, sabichona e dona do mundo, somente por ter defendido – ou esclarecido – alguns pontos de vista em relação à França e aos franceses e, algumas vezes, por ter corrigido a pronúncia de uma palavra, não por iniquidade, mas por mania, talvez por ser professora.

Na realidade, quem morou em Paris não é esnobe; pelo contrário é simples e bem resolvido. É alguém que realizou trabalhos domésticos sem queixas, alguém que embalou suas compras no supermercado, alguém que retirou o lixo de casa todas as manhãs sem fazer cara feia; alguém que completou o tanque de gasolina nos postos – na França não há frentistas – e que lavou os vidros de casa para permitir a entrada radiante de um raio de sol.

Mas também é alguém que visitou museus, viu lançamentos de filmes, visitou exposições, assistiu a espetáculos de dança e de teatro, assistiu a seminários e conferências proferidas por intelectuais de destaque no Brasil e no mundo; fez piqueniques nos fins de semana, enfrentou o duro inverno com temperaturas abaixo de zero. Aprendeu a sonhar com  a primavera e a esmagar as folhas de outono nas longas caminhadas nos bosques e parques próximos de casa. Enfim, é alguém que vê o mundo de um jeito diferente e que abandonou aquele olhar deslumbrado do turista que foi um dia, alguém que teve a chance de vivenciar uma experiência singular.

Quem viveu em Paris, ou em qualquer outra cidade do mundo, por mais de seis meses, antes de tudo foi aprendiz; depois se tornou guia espontâneo; tornou-se uma espécie de professor de escola maternal, quando levou pela mão amigos ou familiares sôfregos de novidades e descobertas. Foi tradutora nas lojas e restaurantes. Percorreu e ensinou caminhos, preparou aventuras gastronômicas, bizarras ou deliciosas; por gostar de compartilhar as belezas que aprendeu a desfrutar, essas aventuras inusitadas eram alimentadas pelo carinho, pelo sorriso, pelo amor.

Mas todos os adjetivos se tornam pobres e insignificantes se comparados aos prazeres que a experiência de ter vivido na França, sobretudo na cidade luz, proporciona a um ser humano; os amigos de toda vida, que nos oferecem a cama mais aconchegante e a mais bonita. Os jantares e almoços elaborados, de dar água na boca, regados a vinhos especiais tirados da adega em nossa homenagem. Festas inesquecíveis na Bretanha, na Normandia, na Borgonha, no Tarn, na Champanhe, no Auvergne ou na Provence. Amigos que nos querem sempre, ao longo dos anos, e que a cada encontro, muitos anos depois, renovam a certeza de que eles fazem parte da nossa vida. Essas coisas que enternecem o coração estão intimamente atreladas aos momentos vividos, às experiências adquiridas, ao aprendizado de uma nova cultura, em um país onde se respira arte e história.

Por isso concordo com Ignácio de Loyola Brandão e com Carolina Nogueira. Sabendo francês podemos ser mais felizes, sim. E tenho a impressão de que a afirmativa é válida para qualquer idioma. Podemos ser mais felizes ao brincar com uma criança, escutar histórias de um ancião ou compartilhar as experiências de um trabalhador ou de um feirante que merca os seus morangos ou as suas cerejas em um país estrangeiro. E tudo isso, além do capital linguístico citado por Carolina Nogueira, está intimamente conectado ao preenchimento da vida, à contemplação do mundo e à avaliação das coisas, como quer Loyola, ou seja, ao jeito de encarar a existência como algo que precisa de alimento. E isso é patrimônio, dos bons, que ninguém pode usurpar; ele nos pertence de fato e de direito. É conquista, experiência, riqueza imaterial adquirida.

Leni David

Feira, 28/11/2011.

Juventude e maturidade

35 anos para ser feliz

 Martha Medeiros

Uma notinha instigante na Zero Hora de 30/09: foi realizado em Madri o Primeiro Congresso Internacional da Felicidade, e a conclusão dos congressistas foi que a felicidade só é alcançada depois dos 35 anos. Quem participou desse encontro? Psicólogos, sociólogos, artistas de circo? Não sei. Mas gostei do resultado.

A maioria das pessoas, quando são questionadas sobre o assunto, dizem: “Não existe felicidade, existem apenas momentos felizes”. É o que eu pensava quando habitava a caverna dos 17 anos, para onde não voltaria nem puxada pelos cabelos. Era angústia, solidão, impasses e incertezas pra tudo quanto era lado, minimizados por um garden party de vez em quando, um campeonato de tênis, um feriadão em Garopaba. Os tais momentos felizes.

Adolescente é buzinado dia e noite: tem que estudar para o vestibular, aprender inglês, usar camisinha, dizer não às drogas, não beber quando dirigir, dar satisfação aos pais, ler livros que não quer e administrar dezenas de paixões fulminantes e rompimentos. Não tem grana para ter o próprio canto, costuma deprimir-se de segunda a sexta e só se diverte aos sábados, em locais onde sempre tem fila. É o apocalipse. Felicidade, onde está você? Aqui, na casa dos 30 e sua vizinhança.

Está certo que surgem umas ruguinhas, umas mechas brancas e a barriga salienta-se, mas é um preço justo para o que se ganha em troca. Pense bem: depois dos 30, você paga do próprio bolso o que come e o que veste. Vira-se no inglês, no francês, no italiano e no iídiche, e ai de quem rir do seu sotaque. Não tenta mais o suicídio quando um amor não dá certo, enjoou do cheiro da maconha, apaixonou-se por literatura, trocou sua mochila por uma Samsonite e não precisa da autorização de ninguém para assistir ao canal da Playboy. Talvez não tenha se tornado o bam-bam-bam que sonhou um dia, mas reconhece o rosto que vê no espelho, sabe de quem se trata e simpatiza com o cara.

Depois que cumprimos as missões impostas no berço — ter uma profissão, casar e procriar — passamos a ser livres, a escrever nossa própria história, a valorizar nossas qualidades e ter um certo carinho por nossos defeitos. Somos os titulares de nossas decisões. A juventude faz bem para a pele, mas nunca salvou ninguém de ser careta. A maturidade, sim, permite uma certa loucura. Depois dos 35, conforme descobriram os participantes daquele congresso curioso, estamos mais aptos a dizer que infelicidade não existe, o que existe são momentos infelizes. Sai bem mais em conta.

Outubro de 1998

 

A cobra e o vaga-lume

Leni David

De vez em quando saio navegando pela internet em busca de notícias, novidades e inspiração para o bloguinho; hoje descobri uma crônica muito bonita escrita por Maria Stella de Azevedo Santos, a querida Mãe Stella, do Ilê Axé Opô Afonjá e que foi publicada no blog Mundo Afro.  .

O texto despertou a minha atenção, pois ele trata da inveja, esse sentimento que quase sempre atribuímos ao outro. Mãe Stella, de uma maneira simples e sábia, esclarece alguns aspectos relacionados a esse sentimento considerado nocivo. Segundo ela, devido a sua função no Ilê Axé Opô Afonjá, pessoas de idades, raças e credos diversos, a procuram porque se sentem invejadas; mas, por incrível que pareça, nunca, nem uma vez sequer, alguém a procurou para se libertar do sentimento da inveja.  Então ela questiona: “Será que só existem invejados? Onde estarão os invejosos?” 

Ora se o sentimento existe, é identificado e disseminado, por que somente os invejados procuram ajuda? Os invejosos jamais se arrependem? Ou será que os invejosos são incapazes de se autoavaliarem? Segundo a Ialorixá certas pessoas ficam enfurecidas quando o oráculo anuncia que os problemas apresentados não são decorrentes da inveja. E afirma que, na maioria das vezes, essas pessoas são profundamente inseguras, o que gera uma necessidade de auto-valorização. Logo, seria importante que cada pessoa observasse o seu eu interior e fizesse um esforço para identificar o grau de inveja que existe dentro de si. Dessa forma ela poderia tentar controlar, ou mesmo eliminar este sentimento pernicioso, o que evitaria uma interferência negativa na vida do seu semelhante e, sobretudo, na sua própria vida, pois qualquer energia que emitimos reflete em nós mesmos em primeiro lugar.

E o melhor é que a velha senhora mostra, numa pequena historinha que transcrevo abaixo, a verdadeira face da inveja:

“Uma cobra deu para perseguir um vaga-lume, cuja única atividade era brilhar. Muito trabalho deu o animalzinho brilhante à insistente cobra, que não desistia de seu intento. Já exausto de tanto fugir e sem possuir mais forças o vaga-lume parou e disse à cobra: – Posso fazer três perguntas? Relutante a cobra respondeu: – Não costumo conversar com quem vou destruir, mas vou abrir um precedente. O vaga-lume então perguntou: – Pertenço à sua cadeia alimentar?- Não, respondeu a cobra. – Fiz algum mal a você? – Não, continuou respondendo a cobra.- Então por que me persegue? – perplexo, perguntou o brilhante inseto. A cobra respondeu: – Porque não suporto ver você brilhar, seu brilho me incomoda.”

A fábula da cobra e do vaga-lume, que eu não conhecia, mostra muito bem a mesquinhez daqueles que se incomodam com o brilho alheio, mesmo um brilho singelo. A cobra é poderosa, embora seja asquerosa; com uma picada ela pode destruir a vida de um ser humano. O vaga-lume, na sua infinita insignificância, apenas alegra olhos distraídos. A própria Mãe Stella chama de ingênuas as pessoas que se acreditam ofuscadas pela luz emitida pelo seu semelhante. Segundo ela, cada um possui o seu brilho, que deve estar sempre em harmonia com a sua função. Existem até pessoas cujas funções requerem simplicidade, onde o brilho natural só é percebido através do reflexo do olhar do outro.

E ela lembra ainda de uma senhora coberta de joias que insistia em afirmar que as pessoas a olhavam com inveja. Incomodada pelas queixas a Iarorixá retrucou: “quem não quer ser visto, não se mostra”.

A nossa escritora encerra o seu texto explicando que a inveja é popularmente conhecida como “olho gordo”. Assim, se não queremos ser atingidos pelos “maus olhos” do outro, devemos cuidar para que nossos olhos emagreçam, senão eles ficam tentados a desejar o alheio. E ela adverte: Já que fazemos dieta para que nossos corpos fiquem saudáveis, devemos também fazer dieta para os nossos olhos, pois eles refletem a beleza da alma. A tendência agora é, portanto, olhos magrinhos, mas não anoréxicos, pois alguns desejos eles precisam ter, de preferência, desejos saudáveis.

 Mãe Stella

Sabendo francês podemos ser mais felizes

 

Ignácio de Loyola Brandão – O Estado de S.Paulo

Não me considerem esnobe, exibido. Mascarado, como se dizia na minha infância. Não usam mais a palavra? Tão atual. O que há de gente mascarada no mundo. Vou dizer o óbvio. Para desfrutar melhor Paris, a Provence celebrada, e outros, sabendo francês, os prazeres multiplicam-se por cem, o desfrute por duzentos, a alegria por quinhentos. Mesmo que você tenha ido apenas para fazer compras, como a maioria dos brasileiros, que pedem descontos em português mesmo e em altos brados (ou em brado retumbante), vale a pena aprender francês.

O parisiense muda quando você se dirige a ele na sua língua, ainda que precariamente, como eu. Quem não gosta de uma pessoa que chega e você percebe o esforço que ela faz para se expressar em sua língua natal? Assim, vale a pena aprender francês para poder caminhar à vontade em Paris deixando-se envolver por ela, sabendo um pouco mais.

Claro, o francês não é importante apenas por isso. Mas já é um enorme handicap. Há as revistas, os milhares de livros traduzidos do mundo inteiro, o cinema, a música, até a facilidade nas compras. Só poder ler a gigantesca coleção La Pléiade (projeto de uma vida) no original é uma bênção, raras vezes igualada. Ou os fólios, delicados, sensuais? Hoje estamos aprendendo apenas o que o mercado chama de línguas úteis, como o inglês, o japonês, o mandarim. Mandarim? (Eu lá quero falar chinês?) Para vencermos na vida? Nos tornarmos empreendedores? Sermos alguém? Mas o que é ser alguém? Tudo tem de ter aplicação prática? Se é assim, acabemos com o ensino brasileiro, ele não leva a nada, do jeito que está estruturado.

Há na nossa vida algo que é preciso preencher. Uma necessidade interior de espírito, contemplação do mundo, da vida, avaliação das coisas. Encarar a existência como algo que precisa de alimento. Foram eliminando as línguas de todos os cursos, a não ser alguns muito especializados. Tive no ginásio português, inglês, francês, latim e espanhol e posso dizer que isso me ajudou. Mas vieram deletando tudo, como se diz. E o francês se foi por meio de ministros que só pensam em política. O atual quer a Prefeitura de São Paulo, imaginem. Nem administrou direito o Enem.

A primeira palavra que aprendi em francês foi: nous. Estava no primeiro ano do ginásio. Tínhamos aulas de francês desde o primeiro dia com mademoiselle Fanny, uma graça de pessoa. Perguntamos: “Por que a senhora começou com o nous, que significa nós, e não com o je, que quer dizer eu?” Ela sacudiu o dedo: “O nous somos todos, é o coletivo, a classe. O je é muito individualista.” Esses eram os professores que tínhamos. Jamais dona Fanny falou em português na aula. Nos virávamos para saber o que ela queria dizer. Ela sabia conduzir a lição, de maneira que descobríamos os significados e as pronúncias às vezes sutis do francês, língua tão poética, sensível, cheia de nuances, e ao mesmo tempo incisiva. Dificuldades terríveis para diferenciar Anne (Ana) de âne (asno). A professora insistia, queria a perfeição. Nesta minha idade, penso, dia desses entrar para a Aliança Francesa a fim de aperfeiçoar minha precariedade.

Donna Fanny ainda está lá em Araraquara. Até algum tempo atrás, quando eu a encontrava na rua, ela me dizia, como sempre disse ao entrar na classe:

– Bonjour, mon enfant!

– Bonjour, madame.

– Mademoiselle, mademoiselle…

Ria, afetuosa. Aos 14 anos estávamos lendo Alexandre Dumas no original. Não era fácil, mas a gente acabava gostando, se imaginava na França. Também Victor Hugo, Lamartine, Chateaubriand, depois Balzac, Flaubert, Stendhal. Hoje chegaríamos a Le Clézio, Houellebecq, Jonathan Littell, Georges Perec. Aos 16 tivemos acesso a Jaques Prévert, que deslumbramento! A poesia entrava em nós por meio de Aragon, Paul Valéry, Verlaine, e, claro Rimbaud e Baudelaire, o maldito. Também Céline, complicado, Camus, os romances de Sartre, um pouco de Proust (eu mantinha a tradução do Quintana do lado). Toda semana, nos anos 50, havia um filme francês no cinema. Fanny insistia para que fôssemos. Não era exigir muito, sabíamos que algumas estrelas francesas como Martine Carol, Claudine Dupuis e Françoise Arnoul mostravam os peitinhos, era um avanço na nossa vida sexual. Mas havia Arlety, Edwige Feuillère, Maria Casarés, soberbas. E Gerard Philippe, jamais substituído. Hoje minhas paixões são Juliette Binoche, Irene Jacob, Marion Cotillard. Por outro lado, descobrimos os filmes de Marcel Carné, de René Clair, André Cayatte, Jean Delannoy, Robert Bresson, clássicos. Depois, digerimos toda nouvelle vague, que mudou a linguagem do cinema.

Nós, que aprendemos francês, tivemos sempre algo mais dentro de nós. De coisas pequenas e grandes. Não estou aqui para fazer lista e apenas para insistir numa coisa muito simples: sabendo francês, sempre me senti um pouco mais feliz na vida. Uma delas foi ouvir, recentemente, do garçom de um bistrô; “Monsieur, vous êtes du quartier?” (O senhor é do bairro?) Que, como Eros Grau diz em um livrinho delicioso sobre Paris, é um sinal de que você está sendo aceito. Coisa nada fácil para um estrangeiro. Que volte o francês às escolas!