A implosão da mentira

 

Affonso Romano de Sant’Anna

Fragmento 1

                Mentiram-me. Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente. Mentem

de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente

que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes. Alegremente

mentem. Mentem tão nacional/mente

que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.

 

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases

falam. E desfilam de tal modo nuas

que mesmo um cego pode ver

a verdade em trapos pelas ruas.

 

Sei que a verdade é difícil

e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade

pela mentira, nem à democracia

pela ditadura.

 

Fragmento 2

               Evidente/mente a crer

nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo

permanente.

 

Mentem. Mentem caricatural-

mente.

Mentem como a careca

mente ao pente,

mentem como a dentadura

mente ao dente,

mentem como a carroça

à besta em frente,

mentem como a doença

ao doente,

mentem clara/mente

como o espelho transparente.

 

Mentem deslavadamente,

como nenhuma lavadeira mente

ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem

com a cara limpa e nas mãos

o sangue quente. Mentem

ardente/mente como um doente

em seus instantes de febre. Mentem

fabulosa/mente como o caçador que quer passar

gato por lebre. E nessa trilha de mentiras

a caça é que caça o caçador

com a armadilha.

 

E assim cada qual

mente industrial?mente,

mente partidária?mente,

mente incivil?mente,

mente tropical?mente,

mente incontinente?mente,

mente hereditária?mente,

mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente

constroem um país

de mentira

diária/mente.

 

Fragmento 3

               Mentem no passado. E no presente

passam a mentira a limpo. E no futuro

mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar

em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu

quem mente.

mas o tribunal que o julga

herege/mente.

Mentem como se Colombo partindo

do Ocidente para o Oriente

pudesse descobrir de mentira

um continente.

 

Mentem desde Cabral, em calmaria,

viajando pelo avesso, iludindo a corrente

em curso, transformando a história do país

num acidente de percurso.

 

Fragmento 4

                Tanta mentira assim industriada

me faz partir para o deserto

penitente/mente, ou me exilar

com Mozart musical/mente em harpas

e oboés, como um solista vegetal

que absorve a vida indiferente.

 

Penso nos animais que nunca mentem.

mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros

cuja verdade do canto nos toca

matinalmente.

Penso nas flores

cuja verdade das cores escorre no mel

silvestremente.

 

Penso no sol que morre diariamente

jorrando luz, embora

tenha a noite pela frente.

 

Fragmento 5

                Página branca onde escrevo. Único espaço

de verdade que me resta. Onde transcrevo

o arroubo, a esperança, e onde tarde

ou cedo deposito meu espanto e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema

explosivo-conotativo

onde o advérbio e o adjetivo não mentem

ao substantivo

e a rima rebenta a frase

numa explosão da verdade.

 

E a mentira repulsiva

se não explode pra fora

pra dentro explode

implosiva.

Este poema, que foi enviado ao Releituras pelo autor, foi publicado em diversos jornais em 1980. Apesar do tempo decorrido, face aos acontecimentos políticos que vimos assistindo nesses últimos tempos, ele permanece atualíssimo.

Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, foi publicado também em várias antologias, como “A Poesia Possível”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1987, “mas os leitores a toda hora pendem cópias”, afirma o poeta.

Fonte: Releituras

 

Rachel de Queiroz escreve sobre o voto e as eleições

Recebi de um amigo querido, a crônica que publico abaixo. Ela foi escrita por Rachel de Queiroz em 1947 e foi publicada na revista O Cruzeiro. Apesar dos seus 65 anos de existência o texto pode ser considerado como novíssimo, escrito ontem, por alguém que está vivendo a realidade do século XXI, ou melhor, o clima das eleições que se aproximam. De “velho” mesmo, somente a ortografia.

 VOTAR

Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama govêrno democrático, ou govêrno do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato.

No entanto, talvez não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu sentido mais literal: govêrno do povo. Porque, numa democracia, o ato de votar representa o ato de FAZER O GOVÊRNO.

Pelo voto não se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo.

Escolhem-se pelo voto aquêles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas – e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.

Escolhemos igualmente pelo voto aquêles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aquêles que irão estipular a quantidade dêsses impostos. Vejam como é grave a escolha dêsses “cobradores”. Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gôta de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bôlso.

E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aquêles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, mas também se escolhem aquêles que vão “fabricar” o dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos.

Pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Êles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.

Não preciso explicar muito êste capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.

Escolhem-se nas eleições aquêles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna de todo o interêsse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o comando de tôdas as fôrças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as polícias.

E assim, amigos, quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fêz um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio – lembrem-se de que não vão proporcionar a êsses sujeitos um simples emprêgo bem remunerado.

Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para êles comandarem – e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós próprios fôssem.

Entregamos a êsses homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra – e a flor da nossa mocidade, a êles prêsa por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e criador.

Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva.

Porque, afinal, a mulher quando é ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o govêrno, quando é ruim, êle é que nos dá a surra, êle é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da bôca dos nossos filhos e nos faz aprodecer na cadeia. E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo.

E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar êste ou aquêle candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.

Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem mêdo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem mêdo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno”.

 

 

Carlos Barbosa participa do Leituras Públicas

O escritor Carlos Barbosa participirá do projeto LEITURAS PÚBLICAS, da Fundação  Pedro Calmon, hoje, quinta-feira, no quadrilátero da Biblioteca dos  Barris, a partir das 17h.
Ele fará a leitura de trecho do romance “Beira de rio, correnteza” e de outros textos, se der tempo.
A mediação será do escritor Dênisson Padilha Filho.

 

Um conto de Luís Pimentel

Eastweek em Botafogo

Luís Pimentel

Foi num réveillon que passou. Ela estava deitada ao meu lado no sofá, que ficava na sala da minha casa, mas não sei como havíamos chegado ali. Pela janela do apartamento, na Rua São Clemente, via-se as luzes do Morro Dona Marta e mais algumas ruas de Botafogo. Via-se o brilho e quase ouvia-se o pipocar dos fogos na Lagoa. Imaginava-se o que poderia estar acontecendo nas areias de Copacabana.

O vento invadia a sala pelas frestas da janela e fazia balançar os xaxins pendurados no teto. Às vezes era um cheiro de enxofre e temores. Às vezes o gosto horrível da mistura de cigarro e conhaque. As luzes do Morro Dona Marta não me diziam muita coisa, pois era um tempo em que eu ainda não tinha medos. Primeira vez que deitávamos no sofá, era a primeira vez que deitávamos juntos onde quer que fosse, primeira vez que eu via aquela mulher.

Começou a me contar As bruxas de Eastweek, que assistira recentemente, e estava muito empolgada com a coragem e ousadia das mulheres-bruxas no filme, com o talento e a sensualidade do Jack Nicholson no filme, com a cor, a luz, a fotografia do filme, tudo muito sombras, uivos, ventos muito fortes e nevoeiros. Ela estava com a cabeça encostada em meu ombro e eu não tirava os olhos da janela. Também não tirava o ouvido de sua cabeça, de onde pareciam vir os barulhos de carros lá embaixo, do vento gritando lá fora. Falava e falava sem parar do filme, as maestrias todas do roteiro, do diretor e dos atores, e o meu braço repousava dormente sob o seu ombro. Minha mão encostou inocentemente em seu peito e aí pareceu que o vento soprou mais brando, que o mundo já não ia se acabar.

Então fui até a janela e acompanhei atentamente os movimentos de um avião que circulava o Pão de Açúcar antes de apontar o bico para o Aeroporto Santos Dumont, como se o 31 de dezembro fosse um dia qualquer. Deu vontade de viajar, lugares distantes, essa tal de Eastweek, quem sabe. Freada brusca e alguém gritando “quer morrer, filho da mãe, olha por onde anda”, ela falando, falando, falando. Comecei a alisar o seu peito e minha mão suava muito. Lembrei que precisava aparar as unhas e apertei o bico do seu peito. Que ficava duro, pontudo e enrugado nas pontas dos meus dedos. Seu sexo era o mundo à minha espera. Morcegos e vampiros me convidavam insistentemente a entrar. Eu já não sentia qualquer inveja do cretino do Jack Nicholson.

Sabia que o vento ia voltar com toda a febre, que minhas plantas morreriam de susto, mas era último dia do ano e me agarrei em seus cabelos, que tinham um cheiro bom. Seu peito tinha um cheiro bom, não me importava que ela desse cabo de todo o conhaque, de todo o meu cigarro, depois desaparecesse como desapareceu, sem abrir a porta, enquanto eu adormecia entre o gozo e o delírio e abria os olhos muitas horas depois para o sol terrivelmente carioca no primeiro dia de um novo ano, para a dormência da rua e a poeira das obras do Metrô.

O susto no olhar do porteiro me levou a encarar o espelho da recepção: não havia um pingo de sangue em meu corpo, mas eu ainda buscava nos bolso um endereço que a trouxesse de volta.

Eu sei que Eastweek é um bocado longe daqui.

 

Encontro literário

Na quinta próxima, 14/06, às 20h, no Bistrô Caffé (Av. Maria Quitéria, 1960), o poeta e artista plástico Antonio Brasileiro, membro da Academia Baiana de Letras e um dos fundadores do Grupo Hera, irá nos brindar com sua inteligência e bom humor no 1º Café Literário promovido pelo Bistrô Caffé em parceria com Coleção Nova Letra e o grupo Sociedade dos Poetas Quase Vivos. O evento trará, além do bate-papo com o convidado, recital de poesia e performances artísticas.

A entrada é gratuita.