Uma linda cena

 

Segundo soube, o  filme Amargo Pesadelo (Delivrance – 1972) estava sendo rodado no interior dos Estados Unidos. O diretor fez a locação de um posto de gasolina, onde aconteceria uma cena entre vários atores, que  contracenariam com o proprietário do posto, morador do local juunto à mulher  e o  filho.

Este último (o menino), autista, nunca saía do terreno da casa. A equipe parou no posto de gasolina para abastecer e aconteceu a cena mais marcante que o director teve a felicidade de encaixar no filme. Num dos cortes para refazer a cena  do abastecimento, um dos atores, que era músico e sempre andava acompanhado do seu instrumento de cordas, aproveitando o intervalo da gravação e já tendo percebido a presença de um garoto que dedilhava um banjo na varanda da casa, aproximou-se e começou a repetir a sequência musical do garoto.

Como houve uma “resposta musical” por parte do garoto, o diretor captou a importância da cena e mandou filmar. O restante vocês verão no vídeo.

Atentem para alguns detalhes: O garoto é verdadeiramente um autista; – ele não estava nos planos do filme; – A alegria do pai curtindo o duelo dos banjos… dançando.  A felicidade da mãe captada numa janela da casa; a reação autêntica de um autista quando o ator músico quer cumprimentá-lo.

Vale a pena o duelo, a beleza do momento e, mais que tudo, a alegria do garoto. No parece indiferente, mas, à medida que toca o seu banjo, ele cresce com a música e vai se deixando levar por ela, até transformar a sua expressão num sorriso contagiante,  que transmite a todos a sua alegria.

A alegria de um autista, que é resgatada por alguns momentos, graças a um violão forasteiro. O garoto brilha, cresce e exibe o sorriso preso nas dobras da sua deficiência, que a magia da música traz à superfície.  Depois, ele volta para dentro de si, deixando a sua parcela de beleza eternizada “por acaso” no filme “Amargo Pesadelo”

 

Colaboração enviada pelo meu primo-amigo, Antônio Isaias. Muito obrigada, Tonho, gostei muito!

 

Tempo de Natal

 

Tonde  lilás

Leni  David

 Era dezembro e o dia estava frio e cinzento; saiu do trabalho no final da tarde e pegou o metrô. O movimento era intenso. Algumas pessoas sorridentes, outras afobadas, quase todas carregavam sacolas onde se viam pacotes coloridos e decorados. Sentia-se cansada, mas não conseguira um lugar para sentar-se. Desceu na estação Palais Royal onde um músico tocava harpa. Andou durante algum tempo escutando a melodia e acompanhando o compasso do ritmo.

Sentiu frio. Ajeitou a bolsa à tiracolo, calçou as luvas e enfiou as mãos nos bolsos do casaco. Tomou a direção da rua de Rivoli onde as vitrines faiscavam exibindo brilhos e cores. Havia vitrines verdes, vermelhas, amarelas, azuis, como se os comerciantes houvessem decidido espalhar cores mágicas pelas ruas para magnetizar os passantes. Decoradas e iluminadas com esmero, as vitrines tinham uma aparência fantástica.

De vez em quando, seduzida como uma borboleta que gira em torno da chama incandescente, parava para apreciá-las. Era época de Natal e talvez comprasse alguma coisa interessante para presentear os familiares, mas não se sentia motivada a entrar nas lojas abarrotadas de pessoas que escolhiam objetos, jóias, e que rodopiavam frente aos espelhos. Olhando-as de longe pareciam crianças travessas, felizes com as traquinagens.

A rua de Rivoli era longa e a noite já se anunciava. Exposta ao frio sentia os pés e as mãos enregelados, apesar dos agasalhos; as faces e a boca dormentes e os olhos lacrimejantes. Diante de uma vitrine viu refletida a imagem de uma mulher, vestida com um casaco preto e longo. Ela usava uma cachecol colorido em volta do pescoço; tinha um aspecto elegante, mas parecia triste. Assustou-se quando percebeu que a imagem que via refletida no vidro era a sua. Sentiu vergonha e fugiu dali apressada, na direção do ponto de ônibus que a levaria para casa.

Enquanto andava convencia-se de mil razões para estar feliz; não havia motivo para tristeza. Estava vivendo um momento especial; a iluminação feérica deixava a cidade fascinante. Era Natal e ela podia comprar todos os presentes que quisesse. Nada lhe faltava! Sua casa estava decorada, a festa organizada e até havia na sala um lindo pinheiro natural, perfumado, ornado de bolas prateadas e azuis. Sabia que ganharia os presentes que havia escolhido. Além disso, estava em Paris – nome que soa como sinônimo de paraiso – e sabia que muitas pessoas dariam tudo para viver um momento como aquele. Bobagem! Estava apenas um pouco cansada…

Ainda pensando no privilégio de estar ali e convencida de que estava tudo bem, chegou à esquina da praça do Hôtel de Ville. Ficou petrificada no meio da calçada, quase sem fôlego, os olhos arregalados. Não acreditava no que via, pois jamais vira algo tão espetacular. A praça estava lilás! Vários tons de lilás misturados e difusos davam um aspecto inusitado ao local. O imenso prédio da prefeitura, ao fundo, parecia dourado à luz dos refletores. Os jatos d’água da fonte luminosa projetados no espaço refletiam as cores do arco íris e acompanhavam a melodia de uma música de Bach. Era um cenário de sonho.

Sentou-se num banco da praça como se estivesse hipnotizada pelas nuanças do lilás e pela dança das águas coloridas. Quanto tempo ficara absorta contemplando aquele espetáculo? Não sabia. Entrou no ônibus como um autômato e enquanto ele deslizava pelas ruas iluminadas chorou baixinho e admitiu que sofria. Sentia uma tristeza profunda que se insinuava no ânimo e no coração. Portanto, tudo era belo e ela gostava de estar ali. A  cidade não tinha culpa da sua agonia, ninguém tinha culpa. Compreendeu, porém, que era  impossível estar feliz, mesmo se o cenário era  de sonho e encantamento, pois sua presença não estava incorporada àquele espaço; faltava-lhe um pedaço. Ele se encontrava muito longe dali, bem longe, onde o sol esparramava raios dourados para iluminar o verão.

Paris, dezembro 1997

Um poema de Myriam Fraga

 

Banquete

O vinho
que  eu bebo
é  o preço
de  um  homem.

O prato que eu como,
sem  fome,
é  o salário
da  fome
de  um homem.

Mas,

o sonho que eu travo
com  fúria nos dentes

é  somente a metade
do sonho
de um homem.

 

 

  

 Myriam Fraga nasceu em Salvador, Bahia, em 09 de novembro de 1937. É membro da Academia de Letras da Bahia desde 1985 e dirige a Fundação Casa de Jorge Amado. A sua carreira literária teve início no final dos  anos 50, quando intelectuais da época, que frequentavam a Universidade, a Escola de Teatro e a Casa de Cultura localizada no bairro do Canela, se reuniam para trocar, ideias e escritos. O seu primeiro livro foi lançado em 1964, pela editora Macunaíma, criada por Glauber Rocha, Calazans Neto, Fernando da Rocha Perez e Paulo Gil Soares, com o objetivo de publicar as produções literárias dessa geração. 

Obra:

Poesia: Marinhas, Ed. Macunaíma, 1964, Bahia; Sesmaria, Ed. Imprensa Oficial da Bahia, prêmio Arthur Salles, 1969, Bahia; O livro dos Adynata, Ed. Macunaíma, 1975, Bahia. O Risco na Pele, Ed. Civilização Brasileira, 1979, Rio de Janeiro; A Cidade, Ed. Macunaíma, 1979, Bahia ; As Purificações ou o Sinal do Talião, Ed. Civilização Brasileira, 1981, Rio de Janeiro; A Lenda do Pássaro que Roubou o Fogo (Disco/Livro com música de Carlos Pita e monotipias de Calasans Neto), Ed. Macunaíma, 1983, Bahia; Six Poems: Tradução de Richard O’Connell, Ed. Macunaíma, 1985, Bahia.; Os Deuses Lares, Ed. Macunaíma, 1992, Bahia; Die Stadt, Ed. Macunaíma, 1994, Bahia; FEMINA, Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996.

Prosa:  Flor do Sertão, Salvador, Ed. Macunaíma, 1986, Bahia

Antologias: Cinco Poetas, Ed. Macunaíma, 1966, Bahia; Antologia da Moderna Poesia Baiana, Ed. Tempo Brasileiro, 1967, Rio de Janeiro; 25 Poetas da Bahia, Ed. DESC, 1968, Bahia; Sete Cantares de Amigos, Ed. Arpoador, 1975, Bahia; Antologia de Poetas da Bahia, em alfabeto Braille (Ed. Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1976, Bahia; Serial, 1978, Bahia; Em Carne Viva, Ed. Anima, 1984, São Paulo; Poetas Contemporâneos, Ed. Roswitha Kempf, 1985, São Paulo; Simulations Selected Translations, Ed. Atlantis, 1983, Estados Unidos; Sincretismo, a Poesia da Geração 60, Ed. Topboo