Clarice Lispector

 

Era sempre inútil ter sido feliz ou infeliz. E mesmo ter amado. Nenhuma felicidade ou infelicidade tinha sido tão forte que tivesse transformado os elementos de sua matéria, dando-lhe um caminho único, como deve ser o verdadeiro caminho. Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida,  jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro para existir”.

Clarice LispectorPerto do coração selvagem. São Paulo: Círculo do livro, 1980,

 

 

5 de Novembro – Dia da Cultura

 

Hoje, 5 de novembro, comemora-se no Brasil o Dia da Cultura. A data foi escolhida por marcar o nascimento de Ruy Barbosa. Muito justo. Nada contra Ruy Barbosa, nem poderia ter…

Dele, para ser franca, conheço um pouco da rica biografia, sei que ficou conhecido como Águia de Haia por nos representar com imenso brilho naquela Corte, que é o autor da Oração aos Moços, que cunhou uma frase sempre repetida e muito assustadora (RB) e que recebeu de Joaquim Nabuco um dos mais rasgados elogios de que se tem notícia: “Ruy Barbosa, hoje a mais poderosa máquina cerebral do nosso país”.

Vindo de quem veio, Nabuco, essas palavras são impressionantes e, para mim, já bastariam para justificar Ruy como patrono do Dia da Cultura.

Mas vou no popular, como dizem os cariocas com muito humor: já que temos um Dia da Cultura a comemorar, honro nesta data José Bento de Monteiro Lobato, criador de amigos de toda minha infância, juventude, maturidade e velhice. Já fui tratada pelo Dr. Caramujo, já piralampei muito com os meninos em suas viagens, já andei sentada no ombro de Heracles, já usei e abusei do Visconde, já sentei aos pés de Dona Benta, já escapei do Minotauro graças aos bolinhos da tia Nastácia e ainda abro muitas vezes a canastra onde guardo meus tesouros, inclusive a tesourinha de uma perna só.

Ser o país onde fica o Sítio do Picapau Amarelo é mais uma das magníficas dádivas de Deus para com o Brasil. Somos um país abençoado, terras férteis, matas riquíssimas, um litoral deslumbrante, montanhas, planícies e planaltos de extrema beleza. Mas entre essas dádivas, não se iludam, está sermos a terra natal de Monteiro Lobato, criador de criaturas que apaixonam as crianças.

O atual ministro da Cultura, Juca Ferreira, baiano como Ruy, fez publicar hoje uma bela carta sobre o Dia da Cultura no site de seu ministério: “É com enorme alegria que o Ministério da Cultura felicita hoje o Dia Nacional da Cultura. Celebração que neste momento especial não poderia ser mais simbólica em vista a importância que a pauta conquistou na agenda do país. É o momento de celebrarmos a riqueza da diversidade cultural, a plena liberdade de expressão e comemorar a força da arte brasileira”.

Quero, em primeiro lugar, cumprimentar o ministro por louvar e mencionar a “plena liberdade de expressão”, sem a qual não há Cultura que resista, e em segundo lugar, lhe dar os parabéns por ser tão sortudo: imaginem se hoje já estivesse em vigor a ignomínia que estava sendo tramada, proibir as Caçadas de Pedrinho de circular por nossas escolas!

Tenho certeza que essa ideia foi mais uma das que jorram da torneirinha de asneiras da Emília, que deve ter levado um bom sabão do Visconde e um pito muito merecido de Dona Benta. O que ela merece é que tia Nastácia nunca mais lhe remende os estragos…

E eu fecho por hoje minha torneirinha de asneiras, em homenagem ao Dia Nacional da Cultura e aos pacientes leitores que chegaram até aqui. Com um duplo abraço: por termos vencido mais uma campanha eleitoral – ufa! – e por olhar em volta e ver que ainda estamos no mesmo Brasil de sempre: lá vem por aí, bela e fagueira, mais uma das sempiternas promessas furadas que nos fazem, a CPMF. Fazer o que? Dar razão a Ruy Barbosa: o homem chega a desanimar da virtude…

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Fonte: Blog do Noblat

O direito ao sumiço (2)

 

Martha Medeiros

Em janeiro de 2008 publiquei uma crônica chamada “O direito ao sumiço”, onde eu falava sobre pessoas que viajam, mas são incentivadas a mandar notícias a todo instante, seja por e-mail, MSN, Skype ou o que for. Uma ansiedade que não havia antes: quando alguém embarcava pra longe, no máximo enviava uma carta, ou um cartão-postal, telefonava de vez em quando, mas ainda conseguia se sentir livre e sozinho, distante de todos e mais próximo de si mesmo. Hoje, com toda a parafernália tecnológica à disposição, você não consegue desaparecer: é facilmente acessado, esteja no continente que estiver. Vantagem para quem ficou e sente saudade, mas o viajante que não se desconecta perde uma rara oportunidade de levar a cabo a frase que tantas vezes é dita quando estamos sobrecarregados: “Que vontade de dar uma sumida”.

Isso me veio à mente quando li as notícias sobre esse estranho caso da France Telecom. No espaço de um ano e meio, 24 funcionários da empresa se suicidaram, sem contar os 13 que tentaram se matar e não obtiveram sucesso – acho que sucesso não é a palavra mais adequada pra situação, mas enfim. Eu não conheço os pormenores do assunto, mas me chamou a atenção o fato de a morte desses funcionários estar vinculada às condições de trabalho: todos se sentiam demasiadamente pressionados. Até aí, não vejo justificativa pra dar fim à vida, a pressão faz parte do meio corporativo em qualquer lugar do planeta, mas há um ponto que merece ponderação: a avalanche de mensagens que lotavam seus computadores e blackberry foi relacionada ao profundo estresse que os acometia. Faz sentido. Algumas pessoas não conseguem mais distinguir o que é vida pessoal e o que é vida profissional. Estão permanentemente conectadas com os outros, a ponto de perder a conexão consigo próprias.

O blackberry, por exemplo (eu sei que ele já está obsoleto, mas eu também estou, conformem-se), me parece infernal: sei de gente que acorda de madrugada para checar e-mails, numa atitude totalmente compulsiva e insana. As pessoas se sentem agoniadas quando ficam fora de alcance. É como se o isolamento, o silêncio e a privacidade expatriassem a criatura, a impedissem de estar em meio aos acontecimentos. É uma inversão total de percepção: só nos sentimos vivos quando acionados pelos que estão de fora. Parece até que dentro de nós não acontece nada, não há nenhuma novidade a descobrir.

Óbvio que deve haver outros motivos  para a onda de suicídios dos funcionários da France Telecom, mas esse vício de ficar conectado 24 horas, seja por mania ou por exigência profissional, merece uma reflexão. Não podemos perder nosso direito ao sumiço, de dar aquela escapada saudável, que pode acontecer tanto numa viagem como aqui, no dia a dia, bastando pra isso não acessar a internet, desligar o celular e curtir a tão necessária companhia de si mesmo. Do contrário, vão pipocar mais casos de gente que surta e acaba saltando da ponte como única alternativa de dar uma sumida.

Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 16117,   7/10/2009.