Uma coisa puxa outra

 

                                                        Leni David

Liguei o computador. Olhei se havia correspondência e dei uma olhada nas manchetes do dia: assassinatos, prisões, catástrofes e corrupção; no tempo do Vinícius lia-se “muito sangue nos jornais”, mas hoje ele também invade as nossas casas sem pedir licença e nem é preciso comprar jornal.

Alguém na rua passou assobiando uma canção antiga. Lembrava da letra, mas não sabia o seu nome, então digitei a palavra “cantareira” no Google e entre outras respostas, encontrei a que queria: “Mambo da Cantareira”, antigo sucesso de Gordurinha, regravado por Macalé em 1974, no disco Aprender a nadar. Rememorei os versos:

 

“Só vendo como é que dói

Só vendo mesmo como é que dói

Trabalhar em Madureira

Viajar na Cantareira

E morar em Niterói

Eh, Cantareira

Eh Cantareira

Vou aprender a nadar”…

 

Só agora me dava conta de que o Mambo da Cantareira, do baiano Gordurinha, fazia uma crítica social. Falava das barcas que atravessavam a Baía de Guanabara, as Cantareiras e das dificuldades enfrentadas pelo trabalhador urbano, morador de Niterói, que trabalhava na periferia do Rio – Madureira – e que era obrigado a enfrentar a travessia da Baía para ganhar o seu sustento. E a música era quente, um mambo dançante e animado.

Mas a recordação que eu guardava da música estava relacionada ao meu irmão, que na época tinha uns nove anos. Ele estava sentado no banco, os cotovelos apoiados sobre a mesa, o rosto entre as mãos e escutava com atenção a música que tocava no rádio, o Mambo da Cantareira; eu engomava a blusa da farda do colégio e também cantarolava a canção.

De repente ele perguntou:

– Lelene, se eu pedir pra o rádio tocar uma música, ele toca?

Distraída, respondi que sim. Ele então deu um pulo, subiu no tamborete e com a boca bem próxima à  tomada elétrica, gritou:

– Seu homem, toca Cantareira de novo que eu quero ouvir!

Lembro da minha gargalhada, da sua carinha de decepção e da frase desconsolada:

-Você disse que tocava!…

 

3 pensou em “Uma coisa puxa outra

  1. Artigo interessantíssimo que divulga a figura tão representativa da baiana com sua beleza, fartura e simpatia. Parabéns Luci

  2. Como uma coisa puxa outra…Essa canção está na trilha sonora do filme A morte e a morte de Quincas Berro D’água, uma bela adaptação da obra amadiana com Paulo José no papel título.

  3. Essas crônicas que revelam um pedacinho de você, são realmente muito engraçadas… Coitadinho do menino… quanta inocência! Beijos, Leni!

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