Um grande homem, um amigo inesquecível: Bira

 

Vamos lembrar sempre do sorriso largo desse intelectual do povo

Patrícia Moreira*

 

O momento é de pesar, mas, certamente, Bira, como todos os seus alunos, amigos e colegas chamavam o mestre Ubiratan Castro de Araújo, certamente tiraria da manga uma pilhéria inteligente sobre os desígnios da morte, como que a desdenhar, ou a acreditar que por trás dela haveria algo de bom. E a despeito da perda e da saudade, é preciso, mais do que nunca, honrar seu nome e fechar este ciclo, lembrando um pouco de quem foi este homem de sorriso largo, que  partiu para longe nestes primeiros passos de um novo ano.

Conheci Bira, ainda menina, quando ele fazia doutorado na França, por intermédio de minha mãe, Leni David; ambos alunos da também saudosa professora Kátia Mattoso. Anos depois, em 1999, quando ensaiava entrar no Mestrado em História da Ufba, tive o privilégio de ser aceita como aluna especial na turma da disciplina Escravidão e Liberdade, que o professor Ubiratan Castro de Araújo ministrava.

Aulas

Ali, a História (com H maiúsculo), me conquistou de vez. Nas deliciosas aulas do professor Bira, ele sempre recheava os acontecimentos históricos com alguma curiosidade sobre os personagens, ou relatava detalhes pitorescos que davam às suas quatro horas de aula um toque diferente, que nos levava a esquecer do tempo.

Nesta ocasião, tive a honra de ler e traduzir, como trabalho acadêmico, alguns capítulos de sua tese de doutorado, sobre a economia escravagista na Bahia, dois volumes de mais de 600 páginas, escritos em francês, que, salvo engano, continuam inéditos. Do seu trabalho foi publicado A Guerra da Bahia: uma narrativa histórica sobre o processo de conflito social, econômico e racial que aconteceu em Salvador e no Recôncavo entre os anos de 1820 e 1823. Trata-se de textos extraídos da sua tese de doutorado que  integram a série de publicações” Capítulos”, lançada pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia e reeditada pela Fundação Gregório de Mattos (da Prefeitura de Salvador), com o objetivo de valorizar a importância da participação popular negra na independência do Brasil,  nos quais retratava de modo particular os acontecimentos do 2 de Julho.

Lutas

Naquelas páginas, a participação dos negros nas lutas pela Independência da Bahia ganharam uma luz especial, contada também de uma forma singular, pois ele também tinha um jeito original de contar a História oficial.

Aliás, Bira não contava, vivia a História. Todos os anos, quando tive a oportunidade de acompanhar o 2 de Julho, lá estava ele desfilando seu entusiasmo pelas ladeiras do Pelourinho, saudando a memória do Batalhão dos Periquitos.

Além do ser querido e amigo, do seu papel como mestre de algumas gerações de historiadores, Bira também tinha seu lado militante, em defesa da cultura afrobrasileira. Mais uma vez, era um militante diferente, destes que dispensam clichês e bandeiras.

Fundação Palmares

À frente da Fundação Palmares, que presidiu nos primeiros anos do governo Lula, e depois à frente da Fundação Pedro Calmon, fez valer sua origem negra ao desenhar e tocar projetos que valorizavam a africanidade da nossa gente. Foi um militante ímpar. Dispensava os radicalismos dos movimentos negros e trabalhava no dia a dia pelo reconhecimento de um legado cultural, pela valorização do negro na sociedade e pela repartição do bolo social.

Bira também levou seu jeito bonachão para a sisuda Academia de Letras da Bahia e escreveu um livro, Histórias de Negro, que sintetiza sua luta e prova aquilo que ele sempre buscou em toda a sua vida: contar a história do povo da Bahia, sob a ótica do negro. Reação à opressão.

Sabedoria

Por tudo isso e muito mais, a velha cidade da Bahia, como ele gostava de dizer, ficou mais vazia, mais triste; perdeu um intelectual e um homem do povo. Bira leva consigo uma sabedoria de vida por fazer as coisas acontecerem de um jeito inusitado. Deixa-nos sua sabedoria acadêmica, sua obra, que ainda está para ser revelada para os historiadores de hoje e de amanhã.

*Patrícia Moreira é jornalista e mestre em História pela Ufba.

Fonte: O texto foi publicado originalmente no Jornal A Tarde de 04/01/2013, p. 7.

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