Fonte: Blog do Mário Magalhães
18/02/2015 12:51
Marcelo Auler, um dos mestres brasileiros do gênero mais nobre do jornalismo, a reportagem, publicou no Facebook o relato abaixo.
Enquanto muitos jornalistas fingiam não saber que o desfile da Beija-Flor foi pago com dinheiro de uma ditadura sanguinária, o bravo Marcelo Auler contava a vida como ela é.
Na porta do hospital Miguel Couto, mas sem atendimento
Por Marcelo Auler
Na emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, no sábado à noite, em pleno carnaval carioca, havia um entre e sai de pessoas. Na maioria, foliões vítimas de pequenos acidentes durante a folia momesca. Chegavam em grupos, alguns mais falantes que outros, os jovens nitidamente “alegres” por conta do teor alcóolico, promoviam algazarra maior, com um volume de voz mais alto. Mas, mesmo entre os acidentados, predominava o espírito alegre.
O curioso é que no entra e saí ninguém reparava em um senhor, aparentando mais do que os seus 52 anos, que permanecia sentado nos primeiros degraus da escada de acesso ao prédio, na Rua Bartolomeu Mitre, no Leblon, zona sul do Rio. Tratava-se de mais um dos cidadãos invisíveis que circulam entre nós sem que os reparemos.
Eu mesmo, que ali aguardava notícias de uma paciente, embora já o tivesse visto, só me interessei por ele quando, com a voz baixa e de forma educada perguntou-me se poderia encher sua garrafinha de água dentro hospital.
Ao entregar-lhe uma nova garrafa d’água, soube que estava por ali há dois dias, queixando-se de febre e apresentando uma ferida na perna direita da qual, na penumbra da noite, e de longe, me pareceu escorrer pus.
Segundo suas explicações, procurou o hospital, na sexta-feira, em busca de atendimento, mas não mereceu qualquer atenção médica. Na triagem o teriam encaminhado para a UPA de Botafogo, sem se preocuparem se ele teria como transpor os cerca de 6 quilômetros que separam o hospital da Unidade de Pronto Atendimento. Não tinha. Com apenas R$ 5,00 no bolso, confessou o medo de gastar o dinheiro na passagem de ida – R$ 3,40 – e depois não ter como voltar com o trocado que restaria. Por ali permaneceu, dormindo na porta do Pronto Socorro, sem ser incomodado.
Já mais tranquilo com relação à situação da paciente que eu acompanhava, procurei entender o que se passava com Júlio César Saniba Peralva, um mineiro de Belo Horizonte, solteiro, nascido em maio de 1962, que segundo contou, por 26 anos foi motorista de ônibus, até que uma “pneumonia mal tratada” o “encostou” no INSS (Beneficio número 700.985.054-3). Desde dezembro recebe R$ 788,00 mensais.
Diz morar em um quarto na comunidade do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. Um irmão reside em outra casa na mesma comunidade. O resto da família, como definiu, “está espalhada”. A ferida na perna ele creditou a um tombo, no caminho do hospital, em busca de atendimento para a febre que sentia e o deixava sem forças.
No Miguel Couto, porém, não mereceu qualquer atendimento. A explicação do segurança é de que ali não tem atendimento ambulatorial, apenas emergencial. Nem mesmo um analgésico qualquer lhe foi dado para diminuir o desconforto. Pelo jeito, o maior hospital público da Zona Sul não possui também qualquer atendimento de assistência social, a ponto de dispensarem um cidadão com aparente mal-estar sem qualquer preocupação de como ele chegará ao local indicado.
Tampouco médicos, funcionários, seguranças e os próprios pacientes que recorrem ao Pronto Socorro se preocuparam com a figura que passou o dia sentado na escada e, à noite, recolheu-se em um pequeno corredor entre a parede do prédio e um canteiro sem plantas. Usando sua sacola de plástico como travesseiro, dormiu da noite de sexta-feira (dia13 de fevereiro) para sábado e pretendia fazer o mesmo naquela noite seguinte, apesar de ao deixar o hospital ter lhe inteirado a passagem de ônibus até Botafogo.
Pelo jeito, não foi a primeira vez que Júlio César foi dispensado de um atendimento. Nos seus pertences estava um encaminhamento concedido pela CAP 2.1 endereçando-o a um tratamento clínico no Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto, Rua Tenreiro Aranha s/n Copacabana. Não tinha data, nem especificava quem o endereçava, além do código CAP 2.1. (Foto em anexo)
Na página da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura do Rio verifica-se que AP 2.1 podem ser duas coisas distintas. Uma é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III Maria do Socorro Santos, na estrada da Gávea 520. Sua área de atuação abrange Rocinha, Vidigal, São Conrado e Gávea (AP 2.1). Trata-se de unidade especializada em saúde mental para tratamento e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave e persistente. Ou seja, se Júlio César esteve ali, ele deve ter algum problema mental. Mas ainda assim foi deixado à própria sorte.
Mas há também referência ao Centro Médico de Saúde Pindaro de C. Rodrigues – AP 21, na Avenida Padrel Leonel Franca, na Gávea. Neste Centro Médico, segundo a página da SMS, são feitas consultas individuais e coletivas; visita domiciliar; saúde bucal; vacinação; pré-natal; exames de raios-x; eletrocardiograma; exames laboratoriais: sangue, urina e fezes; ultrassonografia; curativos; planejamento familiar; vigilância em saúde; teste do pezinho; tratamento e acompanhamento de pacientes diabéticos e hipertensos. Em sendo ali que Júlio César foi atendido, não há explicação plausível para enviá-lo a outra unidade de saúde.
O atendimento médico que ele buscava não lhe foi dado, mas durante o tempo em que ficou na porta do Hospital Miguel Couto, Júlio César só tinha merecido a solidariedade de uma única pessoa. Trata-se de um morador de rua, alto e magro, pela sua descrição, que cuida das motos que estacionam no outro lado da Avenida Bartolomeu Mitre. Foi dele que recebeu o único alimento do dia: metade de um prato de macarrão com carne moida, que o guardador de motos dividiu com o desconhecido. Pelo menos entre eles a solidariedade existe e, como se trata de dois moradores da cidade, conclui-se que nem tudo está perdido na chamada Cidade Maravilhosa: ainda restam pessoas a se preocuparem com quem está ao seu lado, embora sejam dois necessitados.
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