Fernando Pessoa interpretado por Paulo Autran

Ressaca de injustiças!

 
Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

 

Um poema de Pessoa

 Poema em linha reta

 Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas  vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

que tenho sofrido enxovalhos e calado,

que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

para fora da possibilidade do soco;

eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que  eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó principes, meus irmãos,

arre, estou farto  de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu  que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as   mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Álvaro de Campos)

Um poema de Fernando Pessoa

 

Navegar é preciso

 

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

“Navegar é preciso;  viver não é preciso”.

Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

                                               Fernando Pessoa